quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Texto imprescindível: O mensalão, a inquisição e o assassinato do direito penal

Texto imprescindível: O mensalão, a inquisição e o assassinato do direito penal

Elmir Duclerc


A licença para tratamento de saúde do juiz com quem trabalho permitiu-me assistir uma boa parte dos votos mais, digamos assim, emocionantes da julgamento do mensalão: o do Ministro Relator, Joaquim Barbosa,  e o do Ministro Revisor, Ricardo Levandowski.
Contra todas as minhas expectativas, em meio ao discurso embolorado e desnecessariamente hermético, o tom monocórdio e massacrantemente tedioso da leitura dos votos, os lances de suspense e emoção foram muitos, mas vou me ater apenas à polêmica em torno da participação do Ex-Deputado José Dirceu no suposto esquema de compra de votos no Congresso Nacional.
Não li a denúncia do Procurador Geral da República. Na verdade, não sei nem qual a cor da capa do processo. Mas pela referência a ela feita nos debates, pude perceber, com alguma estranheza, que a própria peça acusatória, ao construir o papel desempenhado por Dirceu na trama, invoca expressamente as chamadas teorias da imputação objetiva do resltado, e do domínio funcional do fato, essas ilustres desconhecidas da esmagadora maioria dos nossos operadores jurídicos que atuam na esfera penal.   O que primeiro me chamou atenção, como dito, foi a própria referência a teorias penais no corpo de uma peça acusatória. Isso porque, desde as primeiras linhas de um curso de Direito Processual Penal ou Prática Jurídica Penal, aprendemos que a denúncia deve ter conteúdo eminentemente descritivo. Apontam-se e descrevem-se fatos criminosos, pede-se uma condenação em função deles. Não se argumenta em peça acusatória, e isso não decorre apenas de uma praxe forense qualquer, mas vem do próprio texto legal;  mais precisamente, do art. 41, do CPP.
Mas o que me deixou realmente preocupado foi o debate que se travou em torno das teorias mencionadas, no plenário da mais alta Corte do país, com a prestimosa colaboração de alguns comentaristas ad hoc apresentados como especialistas em Direito Penal, confortavelmente sentados ao lado dos âncoras, vestidos em terno novo, de cabelo engomadinho e com aquele ar de oráculo que os juristas bem conhecem.
Para não cansar os leitores com uma sinopse mais detalhada, o que ficou claro é que nem os senhores ministros, e muito menos os especialistas tinham menor noção sobre o que seja a teoria da imputação objetiva e, o que é pior, sobre quais sejam os limites entre questões de direito penal material e questões de ordem processual penal.   Embora, como dissemos, solenemente ignorada, talvez porque exija um pouco mais de sofisticação intelectual, a teoria da imputação objetiva é algo relativamente simples, e não deveria espantar tanto. Trata-se apenas de uma construção teórica que pretende dar  resposta mais adequada à questão da causalidade, ou seja, sobre o que pode ser apontado como causa de um fenômeno qualquer, para que seja possível imputar (atribuir, vincular) esse resultado a uma conduta. Até então, trabalhava-se com a noção de conditio sine qua non, segundo a qual a causa de um fenômeno é tudo aquilo sem o que ele não aconteceria. Essa, aliás, é a concepção de causa que foi adotada pelo nosso Código Penal, e que, embora pareça clara e indiscutível à primeira vista, já não se sustenta filosoficamente em nenhum ramo do conhecimento humano, e em nenhum lugar do mundo. Veja-se, por exemplo (e só por exemplo), que, por essa concepção, seria possível considerar como causador  do resultado não apenas o homem que aperta o gatilho, mas o fabricante da arma, o professor do curso de tiro, o fabricante da munição, o fabricante do aço, do chumbo e da pólvora, os funcionários das fábricas e lojas e….todos os antepassados de cada uma dessas pessoas.
A teoria do domínio funcional do fato, por seu turno, é apenas uma aplicação específica da lógica da imputação objetiva para aos casos de concurso de agentes, ou seja, aqueles casos em que a ação criminosa é de alguma maneira dividida entre várias pessoas. Assim, se dois indivíduos deram causa a um único e mesmo resultado, será possível, eventualmente, excluir aquele que não tinha o domínio funcional do fato.
A teoria da imputação objetiva, portanto (com todos os seus consectários), surge historicamente como critério LIMITADOR das possibilidades de atribuição (imputação) de um fato criminoso à conduta de alguém (antes mesmo de entrar na análise de elementos de ordem subjetiva), para dizer que, embora um determinado evento esteja na linha lógica de sucessão de outro, nem por isso deve ser considerado como sua causa, sempre que não tenha atuado no sentido de incrementar o risco de ocorrência daquele evento para além dorisco permitido.
Como quase tudo em teoria do crime, a imputação objetiva também não está imune a críticas. Pode-se dizer, por exemplo, que, ao introduzir novos conceitos acaba voltando ao problema que pretendia resolver. Já não se fala, é verdade, que um fenômeno é condição necessária de outro, mas que atua como incrementador do risco de sua ocorrência para além daquilo que seria permitido, aceitável. Ok, mas…e o que produz…causa…esse incremento? Não parece que, como um cão perseguindo o próprio rabo, voltamos à conditio sine qua non?
Seja como for, o certo é que a vocação histórica da teoria, como dissemos, consiste em reduzir, limitar as possibilidades de atuação da punição pela exclusão de uma parte vital da própria tipicidade objetiva, repita-se, sem entrar ainda no mérito da responsabilidade pessoal e subjetiva, da qual é prejudicial.   Aliás, entendida nesses termos a teoria da imputação objetiva não produz qualquer risco de descambar para uma responsabilidade penal objetiva. Não se trata de presumir responsabilidade pessoal por circunstâncias objetivas, mas de utilizar critérios objetivos (é verdade) para afastar circunstâncias objetivas que são prévias à análise da responsabilidade pessoal. Melhor dizendo, a possibilidade de imputar objetivamente um fato a alguém é condição necessária, mas não suficiente para a condenação de quem quer que seja.
O que se viu nos debates entre os ministros (tanto os que condenaram quanto os que absolveram), ou mesmo dos comentários dos especialistas, foi uma confusão total entre imputação objetiva e responsabilidade objetiva, imputação objetiva e dolo, dentre outras bizarrices, mal disfarçadas por uma erudição claramente artificial, e com uma série infindável de citações a juristas nacionais e estrangeiros, naquele conhecido tom de falsa intimidade.   No caso de Dirceu, o erro da acusação (aí incluídos os ministros que condenaram), está em inverter a lógica da imputação objetiva. Ou seja, trata-se não de perquirir se ele agiu de alguma maneira dando causa ao resultado para, depois, indagar se tinha ou não o domínio funcional do fato (o que daria ou não relevância penal à sua conduta). Ao contrário, sustenta-se a existência do domínio funcional (de que fato?) para dele extrair a existência do próprio fato.   O ministro revisor, por seu turno, limita-se a afirmar que a teoria não se aplica ao direito brasileiro, primeiro porque o Código Penal parece consagrar a teoria da conditio sine que non, e depois porque a Constituição Federal veda a responsabilidade objetiva. Claro já está que imputação objetiva (considerada corretamente) não tem nada que ver com responsabilidade objetiva. No que se refere ao acolhimento pelo nosso Código Penal, é fato que o art. 13, do CP, parece mesmo consagrar a fórmula da conditio sine qua non, mas isso não significa dizer que ela ainda deva ser aplicada no Direito brasileiro. Isso porque (diria Lenio Streck) o texto legal é somente o um texto, que não traz consigo uma capa de sentido. O sentido deve ser buscado no contexto das coisas que estão no mundo, que recomendam, nos dias de hoje, o abandono da fórmula clássica da causalidade, porquanto totalmente incompatível com a noção de causa construído pela ciência mais moderna.
Como processualista penal, entretanto, aquilo que me causou maior preocupação foi a absoluta confusão entre a questão (penal material) da imputação  objetiva e a questão (processual penal) da prova. O que percebi da leitura dos votos é que os Srs. Ministros e muitos dos especialistas de plantão invocavam a teoria da imputação objetiva (e do domínio funcional do fato) como uma espécie de carta coringa a ser utilizada sempre que não se pode provar a existência de um determinado fato (conhecido e determinado). Não há provas contra Dirceu, mas podemos condená-lo porque, conforme a teoria do domínio funcional do fato, é impossível que ele não tenha participado (?). Aqui, há uma inversão ainda mais radical. O normal, para qualquer sujeito alfabetizado em Direito Penal e Processual Penal, seria o seguinte: a) Qual o comportamento atribuído ao acusado que teria, em tese, dado causa ao resultado?; b) esse comportamento pode ser afirmado com juízo de certeza, ou seja, está provado? ; c) O acusado, que adotou esse comportamento, certo, determinado e provado, tinha o domínio funcional do fato? Respostas afirmativas? Ok, condenamos.
Não avançamos muito, entretanto, se simplesmente apontarmos as bizarrices desse show de horrores jurídicos que foi o julgamento.  Não basta dizer que os caras não sabem lhufasde Direito Penal. Não basta apenas dizer que é preciso nomear mais penalistas para o STF, ou pelo menos contratar assessores mais competentes na matéria. Não basta dizer que o PGR não sabe fazer uma denúncia conforme o art. 41 do CPP.   O que merece a nossa reflexão, na verdade, são duas questões de fundo que estão totalmente  interligadas, e assim devem ser enfrentadas: a) o que está por trás desse assassinato do Direito Penal em praça pública? b) que consequências podem ser dele extraídas para a construção da democracia no Brasil?
No que se refere à primeira parte do problema, temo que estejamos diante de uma movimento extraordinariamente poderoso de reprodução do modelo inquisitorial de raciocínio jurídico-penal do qual ainda não conseguimos nos livrar, depois de mais de 200 anos da Revolução Francesa.   Tais seriam algumas das principais características desse modelo, ou estilo, na lição do extraordinário Franco Cordero : a) intenso protagonismo do juiz, que, como vimos, atua também como acusador; b) impulsos: nasce uma mística de que o juiz descobre e elimina heresias e delitos; combate forças do mal numa cruzada diária; é mérito seu que o mundo não seja devorado pelo diabo, e sua neutralidade importaria em cumplicidade com as forças do inferno; c) introspecção: culpado ou não, o acusado sabe de coisas importantes, e é vital que o juiz se instale no seu cérebro, em busca de qualquer mínimo resquício de informação; d) teoremas: a falta de debate e contraditório abre espaço ao pensamento paranoide, ensejando que tramas mirabolantes acabem eclipsando os fatos; dono do tabuleiro, o juiz dispõe as peças como quer, atento ou indiferente aos dados, convalidem ou não a hipótese; desenvolve-se um sentimento narcisista de onipotência que faz desaparecer qualquer cautela de autocrítica; e)transferências: o inquisidor viaja no espaço psíquico exposto a alguns perigos, posto que, trabalhando com materiais introspectivos, dependem necessariamente de quem os ministra. Daí decorre que um corréu habilidoso pode, muitas vezes, adquirir vantagens prestando serviços contra cúmplices ou mandantes, muitas vezes simplesmente inexistentes; f) amorfismo jurídico: onde deveriam imperar normas legais, floresce uma espécie de ilegalismo totalmente justificável pela grave missão de descobrir a verdade a todo custo. A necessidade radical de introspecção rechaça vínculos e formas, pois, afinal, maxime in criminibus, é lícito iura transgredi; g) apologias: floresce uma retórica um tanto imprudente e desavergonhada, invulnerável até mesmo à lógica comum, como nos discursos de justificação da tortura.
Será que não vemos algum paralelo entre as características gerais do estilo inquisitorial e o que vimos acontecer no julgamento? Em que medida os Srs. Ministros realmente estiveram abertos à prova dos autos, e em que medida não se deixaram dominar por um quadro mental paranoide? Expressões do tipo: – não é crível que o acusado não soubesse!;- havia um grande esquema de corrupção etc, não são indícios fortíssimos da adoção arpiorística de uma tese, de uma história escandalosa na qual é imperioso  acreditar para dar sentido àquela punição em praça pública que nos faz  gozar?
Por outro lado, precisamos nos perguntar por que a academia simplesmente não foi ouvida (pelo menos até agora). Por que, em lugar daqueles especialistas, juristas como Juarez Tavares, Juarez Cirino dos Santos, Nilo Batista, Miguel Reale Junior, Cesar Roberto Bittencourt e tantos outros nomes conhecidos e respeitados internacionalmente simplesmente não foram consultados pela grande mídia? Como pôde o STF simplesmente ignorar as lições desses doutrinadores? Para que serve, e para que servirá doravante a doutrina, em Direito Penal?   Como já tivemos a oportunidade de dizer, tanto os que condenaram como os que absolveram proferiram votos extensos, cheios de citações de autores nacionas e estrangeiros e permeados daquele conhecido latim-de-bolso;  mas absolutamente inconsistentes do pondo de vista técnico. Nesse passo, a mensagem que transmitem para o público, infelizmente, é de que tanto faz como tanto fez. O que importa é condenar ou absolver. Os fundamentos transformam-se, assim, num detalhe incômodo que o decididor precisa construir depois que já chegou de forma totalmente apriorística e arbitrária à sua decisão. Suspeito, aliás, que o tom estranhamente acirrado dos debates travados entre relator e revisor reflita exatamente isso, ou seja, mais que um conflito de argumentos, estávamos todos diante de um embate de preconceitos ilegítimos (em sentidogadameriano) e concepções solipsistas de mundo, em que a razão jurídica aparece apenas como coadjuvante.
Essa, segundo penso, é a herança maldita que deixa o julgamento do mensalão. Ninguém duvide que ainda há muita água para rolar debaixo dessa ponte. Os acusados ainda poderão manejar embargos declaratórios (que já devem estar prontos a essa altura), cujo julgamento ainda vai consumir  um bom tempo,  rendendo ainda muita presepada jornalística. Ninguém duvide, também, que os acusados poderão sim levar o caso à Corte Americana de Direitos Humanos, até para reclamar da falta de fundamentação jurídica minimamente consistente nos votos, internacionalizando, assim, a fragilidade vexaminosa do nosso Direito Penal de quinta. Ninguém duvide que, durante muito tempo, os (bons) professores de Direito Penal, do Oiapoque ao Chui, terão imensas dificuldades em ensinar teoria do delito e, epecificamente, a teoria da imputação objetiva, totalmente combalida e desfigurada pelo ataque sofrido no STF.
Esse, contudo, não é o maior problema. A pior parte do legado é essa angustiante impressão de que o pensamento penal mais refinado não serve para nada. Que tudo de que precisa um candidato a Ministro do STF é decorar leis e informativos de jurisprudência, para iniciar sua caminhada prestando algum concurso público, e então seguir julgando da forma como lhe der na telha (e com todos os seus prejulgamentos paranóides),  fazendo chicana da exigência democrática (e Constitucional) de (efetiva) fundamentação das decisões judiciais.   Em suma: precisamos de um arremedo de direito penal apenas para passar nos concursos. Para decidir a vida das pessoas, chamemos William-e-Fátima, Boris, Alexandre e, claro, osespecialistas.
Elmir Duclerc Ramalho Junior : promotor de Justiça em Salvador (BA)
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