sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Sobre o beijo gay na televisão aberta


Sobre o beijo gay na televisão aberta

Jo Fagner - Observatório da Imprensa


À sombra da antiga árvore do paraíso revela-se entre os desenhos de galhos e folhas a lendária hipótese da criação humana: a entidade espiritual conhecida como Deus transformou barro em homem e dessa criatura retirou-lhe uma costela para fazer a mulher. No seio da natureza em que habitavam, o encanto de uma serpente conduziu Adão e Eva a morderem a maçã, fruto proibido do Éden. Tal episódio foi responsável pelo estabelecimento do conceito de imoralidade, fundamentada no princípio da vergonha. O pecado original revelou a imperfeição humana e a existência de forças perversas.
Nas passagens e ilustrações que ensinam a teoria bíblica, tão difundida pela doutrina cristã, a criação divina é o evento que sustenta o condicionamento de poder à origem das espécies. Enraíza-se nessas linhas do livro sagrado a concepção de um sistema de organização social conhecido como patriarcado, que se orienta no sentido de atribuir ao homem o papel de chefe de família. A partir daí são marcados os processos históricos de dominação de um gênero (masculino) à subordinação do seu oposto (feminino), tão repetidos nas atitudes mais cotidianas e na atribuição de espaços, tarefas e obrigações morais.
Na mesma teoria ainda se encontra o discurso que, redundante, se torna o responsável pelo surgimento da noção social de sexualidade: a de que existe “um sexo que foi feito para o outro” numa combinação única e possível para garantir sua reprodução. Aparece uma “heteronorma” que limita os afetos e atropela os desejos, tão controlada eficazmente pelas instituições de poder através do matrimônio e do terrorismo biológico que legitimam marido e mulher como protagonistas do capítulo inicial da vida: a fecundação.
Declarações apaixonadas
Tais ensinamentos mostram como qualquer forma de experiência social que não corresponda aos anseios da norma é considerada como manifestação de desonra, uma quebra dos códigos de moralidade, ou como ato indevido contra a natureza. Em meio a versículos e salmos de submissão religiosa, novas parábolas escritas bem depois de Cristo ocupam posições importantes no fórum público da vida cotidiana. A polêmica questão da exibição do beijo entre duas pessoas do mesmo sexo na televisão aberta talvez seja uma de maior notoriedade no cenário nacional das últimas décadas.
O tratamento da homoafetividade na teledramaturgia brasileira apresenta gradativa visibilidade, no que diz respeito à construção de personagens e das cenas protagonizadas pelos casais que surgem na telinha. Entretanto, quando se refere à veiculação de cenas de beijo entre os personagens, uma muralha se ergue entre telespectador e seu aparelho de TV, se inscreve no tabu da aceitação. Contradizer a norma, desrespeitar os princípios cristãos e contrariar a natureza são formas inadequadas de se transmitir conteúdo livre na televisão, principalmente para crianças.
Alguns folhetins enfrentaram o antagonismo do público no desenvolvimento de suas narrativas. A novelaAmérica (Rede Globo, 2005, 21h) foi marcada pela gravação de um beijo entre o casal Júnior (vivido pelo ator Bruno Gagliasso) e Zeca (interpretado por Erom Cordeiro) que não foi ao ar no último capítulo. Em Ti Ti Ti(Rede Globo, 2011, 19h), o personagem Julinho (na pele de André Arteche) protagoniza cenas de declarações apaixonadas com seu companheiro Osmar (vivido por Gustavo Leão), que morre após acidente logo no início da novela e só nos capítulos finais se envolve com o surfista Thales (papel de Armando Babaioff). No mesmo ano e emissora, a novela Insensato Coração(21h) teve cenas ambientadas em espaços de sociabilidade gay, com direito a casal homoafetivo, mas com texto moderado na tela.
Influências do patriarcado
Em contrapartida, a principal emissora adversária da Globo exibiu, em horário nobre [os de maior audiência da emissora, compreendendo o período das 18h às 00h, podendo estender-se até à 1h, com pico entre 20h e 23h] a cena que conteve o que foi considerado como primeiro beijo lésbico da televisão brasileira, protagonizado pelas atrizes Giselle Tigre (que interpretou o papel de Marina) e Luciana Vendramini (que viveu na pele de dra. Marcela) na novela Amor e Revolução(SBT, 2011, 22h). A trama ainda teve outra cena de beijo programada, dessa vez entre dois homens, mas não chegou a ir ao ar. Na televisão argentina, o primeiro beijo aconteceu em 2010, no horário nobre da emissora Telefé, na novelaBotineras, numa cena de beijo entre os atores Christian Sancho e Ezequiel Castaño, que interpretaram jogadores de futebol na história.
frisson do beijo gay entre um casal gay na teledramaturgia brasileira ainda se encontra num capítulo particular. Em 2003, a novela Mulheres Apaixonadas (Rede Globo, 21h) exibiu no último capítulo um selinho entre as personagens Clara (interpretada por Alinne Moraes) e Rafaela (vivida por Paula Picarelli), que estavam vestidas como Romeu e Julieta, na situação de uma versão escolar do clássico homônimo de William Shakespeare. A cena remete ao questionamento de como se desdobra a problemática da permissão do beijo gay na televisão aberta, já que no cinema mudo de 1927 o tabu foi quebrado no filmeWings.
A indústria de filmes eróticos aparece como principal exemplo para sustentar a hipótese da presença de influências do patriarcado na questão do beijo gay. Situações sexuais entre duas mulheres são amplamente vendidas no comércio pornográfico, demonstrando que além de uma aceitação, há também incentivo ao fetiche. Por outro lado, a mercadorização do sexo entre dois homens não faz tanto sucesso para mulheres heterossexuais.
As cegueiras da imoralidade
Nesse sentido, papéis de gênero também se afirmam no contexto do beijo gay. Entre duas mulheres, submissas ao desejo do homem, pode-se afirmar que existe uma masculinidade sendo construída, assim como no exemplo da novela Mulheres Apaixonadas. Um papel de atividade sexual surge, ao mesmo tempo em que se preservam os gestos suaves e íntimos que são marcadores sociais da feminilidade. Entre homens, uma masculinidade é destruída através da passividade de um parceiro, que logo assume status de “mulher” da relação. Trata-se, mais uma vez, de relações de violência simbólica de um gênero sobre outro, como observou o sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002) em sua obra sobre La Domination Masculine, de 1998.
Em termos de classificação indicativa, na televisão aberta não há diferença de tratamento entre beijos hetero ou homossexual. A censura vem por parte do público, da noção cultural de família e principalmente dos anunciantes que sustentam as emissoras com a cara publicidade nos horários de maior audiência. Porém, enquanto meio de comunicação de massa, a TV aberta – munida da sua principal função de formar e informar cidadãos – tem por dever estabelecer tratamento adequado às questões de diversidade sexual, ao invés de imperar em modelos que agem de forma contrária à cidadania.
A sexualidade não está inscrita em um modelo único, para o fim exclusivo de reprodução. Ela inclui toda uma série de desejos, cargas emocionais e identidades políticas, sociais e históricas, que constituem a subjetividade de cada indivíduo. Todas essas formas de expressão são dignas de lugares igualitários em qualquer dimensão do espaço público, seja na rua ou em um produto televisivo. Mostrar o beijo é uma atitude de educar para o respeito às diversidades e informar pessoas desde cedo para todas as formas possíveis de amor. Não se trata de um processo de efeito rápido, mas sim, de ações ininterruptas, ultrapassando as cegueiras de uma imoralidade construída, para que se formem seres humanos aptos a conviver num ambiente de harmonia entre todas as pessoas.
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[Jo Fagner é bacharel em Comunicação Social e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte]

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