quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A caridade e o cacete

A caridade e o cacete

Recordar, Repetir e Elaborar

Dando continuidade à minha obsessão por discursos de políticos (no meu Feissy há vários exemplos), voltemos a Giovanni Queiroz, deputado federal pelo Pará, em sua fala de 11/12/2013:

“[Os índios] querem água, eles querem comida, eles querem condições de trabalho, de habitação decente, eles querem ser civilizados. Nós todos aqui fomos um dia índios, aliás fomos macacos, comprovadamente um dia fomos macacos. Quatrocentos mil anos atrás, ou quatrocentos milhões de anos atrás, nós éramos apenas uma pequena bactéria.”
Eis, portanto, a evolução humana para este senhor: pequena bactéria –> macaco –> índio –> homem civilizado.
Mas hoje não quero falar apenas sobre Giovanni Queiroz. Seria fácil xingar o nobre deputado e esquecer que eu mesma, cerca de quinze anos atrás, provavelmente concordaria com ele.
Depois que minha mãe morreu, tornei-me espírita, e o espiritismo tem uma concepção bastante própria de evolução espiritual. Para os espíritas, como se sabe, não importa o corpo, mero invólucro material, e sim o espírito eterno e imortal que o habita, que evolui ao longo de inúmeras reencarnações.
Mas apesar de ser o espírito e não o corpo aquilo que realmente importa, verifica-se um fenômeno bastante curioso na evolução espiritual dos povos: por uma grande coincidência, os povos mais baixos na escala de evolução espiritual são todos indígenas ou negros, e os mais elevados são os europeus brancos (deve ser a mesma coincidência que leva alguns espíritas a afirmar que heterossexuais são mais evoluídos espiritualmente que homossexuais).
Cheguei a assistir no centro espírita ao filme “A Missão”, de Roland Joffé, e aprendi que os personagens de Jeremy Irons e Robert De Niro eram espíritos evoluídos cuja missão era iluminar o caminho dos nada evoluídos índios.
Portanto, a ideia de “levar o progresso aos índios”, que é o que a bancada ruralista alega fazer, soaria não apenas lógica como muito caridosa aos meus ouvidos de quinze anos atrás.
***
Minutos antes de expor sua notável teoria evolutiva (mezzo moral mezzo biológica) segundo a qual índios são seres intermediários entre macacos e homens, Giovanni Queiroz recomendara abertamente “dar um cacete” em invasores de terras.
A princípio, essa parte do cacete foi a que mais me repugnou: um deputado admite publicamente ter incitado o crime de tortura, e a plateia aplaude.
Passados alguns dias, a parte de dar água, comida e civilização aos índios está me parecendo tão repugnante quanto. Pois, neste caso, a eliminação do outro não vem através do cacete – vem através de um discurso bonzinho e fofo, de ajuda e caridade.
Só que “ajudar os índios” é fácil.
Difícil mesmo é deixar os índios viverem em paz.

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