terça-feira, 16 de setembro de 2014

Imperdoável contradição

Imperdoável contradição

Ao mesmo tempo em que naturaliza o casamento gay na TV e nas ruas, Brasil aceita violações diárias de direitos dos LGBT  

Flávia Oliveira

Foi com naturalidade e humor que Fernanda Montenegro comentou, na “GloboNews”, o par romântico que formará com Nathália Timberg, na próxima novela das 21h da TV Globo. “Estava escrito nas estrelas que eu e Nathália íamos acabar tendo um caso. Somos colegas de 60 anos de vida. Gilberto (Braga, o autor) resolveu nos casar. Achei uma ideia bonita. Já teve casais de todas as idades. Faltavam duas senhorinhas”, disse a atriz a Maria Beltrão, quinta passada. Simples assim. O casal Fernanda-Nathália vai suceder a outros tantos, que se apresentam com justa normalidade tanto na ficção quanto na vida real. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal aprovou, por unanimidade, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em fins do ano passado, o Rio de Janeiro celebrou, de uma vez, 130 casamentos civis entre homossexuais. É avanço evidente e bem-vindo. Problema é o resto da agenda.  

Ao mesmo tempo em que reconhece — e, por vezes, festeja — direitos civis dos homossexuais na telinha e nas ruas, o país dá as costas a violações diárias de princípios constitucionais que deveriam alcançar todos os brasileiros. A Carta Magna cita no Artigo 3º que estão entre os objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação”. O texto se choca com políticas públicas hesitantes e estatísticas escabrosas de violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais.  

Em 2013, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República publicou a segunda edição de um relatório sobre violência homofóbica no país. O documento, com base nas ocorrências registradas pelo poder público, contabilizou 4.851 vítimas, 13 por dia. Foram denunciadas 9.982 violações (de abuso financeiro e discriminação a violências psicológica e física), num aumento de 47% sobre ano anterior. São os últimos dados disponíveis. O segundo semestre de 2014 avança, e, até agora, o relatório do ano passado não saiu.  

O Ministério da Saúde também anda devendo ações de prevenção à Aids voltadas, diretamente, aos jovens e aos gays. Carlos Tufvesson, coordenador de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio, diz que as infecções pelo HIV crescem, há cinco anos, entre os jovens e, há dois, entre os homossexuais: “Houve campanha suspensa por pressão de grupos religiosos. É o mesmo que negar direito à saúde a cidadãos brasileiros”.  

A sociedade avança no debate, enquanto o poder público se rende à pressão das igrejas. A chamada bancada evangélica — não raro, engrossada por parlamentares católicos — influencia tanto a agenda legislativa quanto as políticas sociais do Executivo. Um exemplo foram as cartilhas e os vídeos produzidos pelo Ministério da Educação para combater a homofobia nas escolas públicas. Batizado de Kit Gay pelos religiosos, o material acabou vetado pela presidente Dilma, em 2011. No Estado do Rio, uma lei que proibia a discriminação aos gays em ambientes públicos foi derrubada na Justiça, em 2012. Um novo projeto aguarda aprovação na Assembleia Legislativa, desde o ano passado.  

A corrida eleitoral é momento oportuno para debater a construção da igualdade. Mas tanto os que estão no poder quanto os que o pleiteiam preferem não polemizar com alas conservadoras. Medem o enfrentamento pelos (possíveis) votos perdidos e se alinham a lideranças que misturam Estado e religião. É estratégia que não combina nem com modernidade nem com democracia.  

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