quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A saúde de que nós mulheres precisamos

A saúde de que nós mulheres precisamos

Autor(es): Ana Maria Costa

Correio Braziliense - 02/02/2011

Médica, sanitarista, doutora em ciências da saúde, diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), integra o Grupo Temático Gênero e Saúde da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)

O ministro Padilha disse que a saúde das mulheres é prioridade. Não é o primeiro que promete. O fato é que, na prática, há retrocessos. O que esperamos, o que precisamos em saúde?

É grave restringir as políticas de saúde para mulheres às necessidades reprodutivas. Pior ainda reduzir essa atenção ao ciclo gestação, parto e puerpério. A saúde reprodutiva deve conter o planejamento familiar para as que querem ou não engravidar e a atenção ao abortamento, espontâneo ou não. É urgente admitir o que os números revelam quanto à dimensão do aborto e suas consequências no adoecimento e morte das brasileiras. A proposta Rede Cegonha (que nome infeliz e inapropriado!), mesmo sendo para atenção à saúde reprodutiva, não pode desconsiderar essa abordagem.

A integralidade da saúde da mulher é o enfoque ampliado da condição, necessidades e demandas femininas. Sustentado na retórica, o Paism — sigla usada para referir à política de saúde integral para as mulheres — foi gradualmente dilapidado até ser reduzido a programas de cunho “materno infantil” que proliferaram no SUS sob marcas como Mãe Curitibana, Nascer Sorrindo, Nascer com Cidadania e outras. Todos eles são reducionistas, mesmo sob o aspecto reprodutivo, porque elegem como objeto o desfecho da gravidez e do bebê.

As mulheres merecem uma revolução nas práticas de saúde, com serviços que as respeitem e promovam sua autonomia. Que valorizem o seu papel social e a complexidade da saúde advinda da sobrecarga, da discriminação intrínseca nas relações de gênero e suas repercussões sobre o processo saúde/doença. No mundo real, as mulheres convivem com violência, Aids, drogas, depressão, câncer, entremeadas por questões relacionadas à sexualidade, ciclos de vida, raça, pobreza e segurança alimentar, entre outras.

Há consistentes evidências sobre o uso desnecessário de tecnologias levando à iatrogenia, violência e insegurança do cuidado e aumento nos gastos financeiros. Mais que garantir acesso é preciso garantir o direito à saúde. Com qualidade. Isso requer mudanças pautadas em uma cultura de cuidados que considere as mulheres com suas subjetividades, dores, sofrimentos e direitos.

É necessário mudar a assistência hospitalar, hoje penosa para as mulheres. Garantir assistência ao parto é um discurso recorrente, mas as mulheres ainda não têm vaga na maternidade na hora do parto. Apesar da lei que reconhece os benefícios e concede o direito, não é permitido o acompanhante no parto.

Urge mobilizar toda a sociedade por mudanças no modelo de parto. O praticado hoje piora e torna dolorosa — quando não, trágica — a experiência, com a sucessão abusiva de intervenções obsoletas e arriscadas. Episiotomia, ocitocina, parto deitada e imobilizada, sem acompanhante são a rotina das parturientes; no SUS e nos serviços privados e conveniados. Esse abuso de tecnologias ineficientes e violentas resiste a toda evidência científica em contrário.

Para o planejamento familiar, o SUS oferece métodos anticoncepcionais em toda a rede. Sem as práticas educativas não há escolha autônoma e ocorre indução passiva dos profissionais na seleção do método. Prevalece, no uso de contraceptivos, a clássica polarização: cirurgia de trompas e os hormonais, pílulas e injetáveis. Só a informação, a educação em saúde, garante a escolha autônoma das mulheres e assegura menor risco.

É preciso prevenir gravidez indesejada e, ao mesmo tempo, adotar outras medidas para a redução da mortalidade por aborto; humanizar a atenção ao aborto, espontâneo ou provocado. Não cabe aos serviços de saúde julgar e penalizar as mulheres. É preciso uma profunda transformação cultural nos profissionais de saúde e na opinião pública, pois boa parte das mortes por causa do aborto ocorre em serviços de saúde nos quais as mulheres são sujeitas a negligências e abusos.

A presidente Dilma disse em várias ocasiões: “Não acho certo as mulheres morrerem por não serem atendidas quando provocam o aborto”. Nessa perspectiva, é urgente adotar o conceito da “redução de danos” para o caso do aborto inseguro. É usado quando prevalece o interesse de salvar vidas. É um imperativo ético impedir que essas mulheres morram. Para não morrer, elas precisam de acolhimento, informações, insumos, serviços de saúde que lhes garantam a sobrevivência e a vida. É isso que nós mulheres esperamos da saúde no SUS do governo Dilma.


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