Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
"O estadista deve trazer o coração na cabeça." A frase de John Kennedy, o mais querido presidente dos EUA, possivelmente explique por que sua vida íntima ainda hoje é um mistério, apesar de cercada por intrincada teia de boatos, que abrigaria um relacionamento com a mais famosa ícone da sensualidade feminina no cinema, Marilyn Monroe. Guiar-se pela razão tem sido desafio dos mais instigantes para todos os que militam na vida pública, sendo raros os que conseguem atravessar os longos corredores do poder sem cair nas armadilhas da vida privada. Estas marcam de maneira indelével o seu perfil. Basta lembrar o affaire envolvendo o presidente Bill Clinton e a estagiária Monica Lewinsky, no gabinete anexo ao famoso Salão Oval da Casa Branca, símbolo máximo do poder norte-americano. Ou a conversa picante, gravada em dezembro de 1989, entre o príncipe Charles da Inglaterra, então casado com a princesa Diana, e sua amante (hoje sua mulher), Camila Parker Bowles. A deterioração da imagem de atores políticos por eventos escandalosos tem sido comum no ciclo de fosforescência midiática em que vivemos.
Entre nós, o caso recente que despertou atenção foi a recusa do senador Aécio Neves a submeter-se ao teste do bafômetro, ao ser flagrado com a carteira de motorista vencida, dirigindo um veículo. A questão é: a vida privada do homem público deve ser objeto de interesse social? Resposta inapelável: sim. O homem público tem o dever de compatibilizar a vida privada e a pública, na medida em que ambas são forjadas por valores e princípios que expressam seu caráter. A Constituição expressa serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. É inquestionável tal pletora de direitos. Mas estes devem ser exercidos para garantir a cidadania. Uma coisa é o ato particular, que ocorre no sagrado espaço do lar ou no ambiente pessoal de trabalho, outra é o evento privado que se desenvolve em território público. E mesmo em locais privados a conduta do homem público há de ser condizente com os valores republicanos e com preceitos éticos e morais da sociedade. É o que ocorre com o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, acusado de cometer delito ao atrair adolescentes para festas íntimas em suas propriedades. Quando altas autoridades de uma nação são flagradas em situações torpes, despencam no ranking da credibilidade social. Passam a ser motivo de vergonha e chacota.
É bastante tênue, como se pode perceber, a linha divisória que separa o comportamento íntimo do ator político de sua vida pública. Na história dos governantes, alguns souberam tirar proveito (e fazer marketing) de situações privadas, principalmente por meio de gestos, atitudes e manifestações voltadas para conquistar a simpatia popular. Líderes que procuram "humanizar" a imagem são, em geral, aplaudidos e admirados, eis que despertam nas massas sentimentos de familiaridade, simplicidade e proximidade. Na França, o presidente Giscard d"Estaing costumava sair pelas ruas, participar de partidas de futebol, exibir-se em festivais de acordeão, visitar prisões, convidar varredores de rua para tomar café da manhã no Palácio Eliseu. (Lula teria nele se inspirado para comemorar, todos os anos, o Natal com moradores de rua em São Paulo?) Outros exageram nos gestos, resvalando, por conseguinte, pelo perigoso terreno da galhofa. Pierre Trudeau, então primeiro-ministro do Canadá, em recepção cerimoniosa, chegou a escorregar pelo corrimão de uma escada. Outra feita, ocupou lugar na Câmara dos Comuns envergando camisa polo, paletó esporte e sandálias. Dessacralizar o poder, descer do Olimpo para a terra dos mortais, circular no meio do povo completam a bagagem de artifícios de governantes para atrair a simpatia da população. Tal sinalização contém alta taxa de demagogia.
Há, portanto, atos privados que são apreciados pela sociedade. E esta tolera certa liberdade de costumes e até uma dose de insolência. Mas o carisma do governante ajuda a aplainar arestas. Getúlio e Juscelino, vale recordar, foram presidentes namoradores, o que não lhes corroeu a fama. Thomas Jefferson, um dos homens mais admirados dos EUA, protagonizou um "escândalo" amoroso, o caso com uma de suas escravas, Sally Hemings, que fora a Paris cuidar da filha mais velha do presidente, na época com 9 anos de idade. Já o político inglês John Profumo, que tinha o cargo equivalente ao de ministro da Guerra, um dos heróis do Dia D (desembarque aliado na Normandia durante a 2.ª Guerra Mundial), foi protagonista de um grande escândalo: o envolvimento com a modelo Christine Keeler, no começo dos anos 60.
A rejeição a comportamentos de governantes tem que ver com o espírito do tempo. Em nosso país, a permissividade, particularmente no que concerne à apropriação do patrimônio da res publica, era enorme nos meados do século passado. Hoje o escopo da cidadania percorre sentimentos de classes e setores. Respeito às leis, igualdade, consciência de direitos começam a ser parâmetros para avaliar o desempenho na vida pública. A comunidade passa a enxergar a política com mais rigor. Desvios de padrão são denunciados pelo caleidoscópio social. Quem se arrisca nos descaminhos afunda, inexoravelmente, no poço do descrédito.
Neste ponto, voltemos ao episódio Aécio Neves. A impressão por ele causada, ao se recusar a fazer o teste do bafômetro, é de que não estava em condições de dirigir um veículo. A carteira de motorista vencida foi também sinal de que os bons exemplos, cada dia mais, deixam de vir de cima. Se um senador comete uma traquinagem dessas, por que eu não posso fazer? A comparação, embutida na cachola dos anônimos das ruas, sugere aos homens públicos que tenham cuidado. Não são eles invisíveis aos olhos da multidão.
Se quiserem galgar os degraus mais altos do poder, vale apreender a lição de Kennedy: guardem o coração na cabeça.
0 comentários:
Postar um comentário