Na escuridão
O que me interessa são os desajustados, os fodidos, os sem limite. O que me interessa é a escória, a ralé, aqueles que perderam o rumo. O que me interessa é o grito louco, a cólera, o mar furioso. O que me interessa é a solidão.O que me interessa são os inconsequentes.
E que se fodam as rimas, as formalidades, a vaidade, os gestos mecânicos e pensados. Que se fodam os obedientes, os uniformizados, os elegantes. Que se fodam todas essas etiquetas, gravatas, pastas de couro e protocolos. Quem segue quem? Quem controla o quê?
O que me interessa é o instinto - o bicho à espreita da caça, a boca à espera da mordida, a mão em busca do toque. O que me interessa são os condenados em liberdade, os fugitivos, os que tocaram o fundo e não deram a volta por cima.
Amo os que causam asco, nojo, repulsa, medo. Amo aqueles que não têm bandeira, nem programa, nem palanque. Amo os que não têm vergonha. Amo os tarados, os maníacos, os filhos da puta. Amo aqueles que não fazem parte de nada, nem da estatística. Amo aqueles que se agarram à vida, lutam com ela, aqueles que a veem melhor na escuridão.
Amo aqueles que se reconhecem na escuridão.
Amo aqueles que estão fora de mão, fora de moda, fora do tempo. Amo as prostitutas, os travestis, os bêbados sem companhia. Amo aqueles que não se enquadram. Amo os corredores vazios, as luzes que vencem as janelas, as portas entreabertas. Amo as frestas, mas amo ainda mais as portas escancaradas.
Amo a ventania que arranca as cortinas e derruba tudo, derruba os livros, os quadros, desarruma as toalhas, as roupas, as folhas todas, destrói – um por um – todos aqueles terríveis ímãs de geladeira.
Algumas pessoas são como o vento – um vento descontrolado, imprevisível, vento que faz o barco andar, mas que quando passa apaga as velas e deixa todos sem luz. Pessoas que chegam sem avisar, que quebram a rotina, nos despertam do conforto e se vão – deixando uma sensação de alívio, de vazio, de dor, mas também de encanto.
Pessoas como vento, com força descomunal, com fome de vida, que seguem até o fim, sem medir os estragos, no limite de tudo. Pessoas que fazem da vida um número de trapézio, num circo sem rede e sem plateia, apenas para sentir essa vida, sagrada e descartável, que vai e vem, essa vida por um fio.
Amo essas pessoas e a amizade que não existiu, o diálogo que não aconteceu, a porta que não se abriu. E no fim – porque sempre há um fim – quando elas se vão, quando elas decidem ir, tudo fica pela metade. A garrafa de vinho, o bilhete com duas frases, a cadeira quebrada. Pela metade ficamos nós porque agora estás inteiro. Que a tua luz queime com força infinita e nos ilumine, até que fiquemos todos cegos, mais cegos do que já somos.
Fernando Evangelista é jornalista e mantém a coluna Revoltas Cotidianas
No Nota de Rodapé
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terça-feira, 31 de maio de 2011
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