Aconteceu no Canadá, em resposta a um policial estúpido que declarou para evitar assédios sexuais que as mulheres deveriam deixar de se vestir como “sluts” (traduzido pela grande mídia moralista como “vagabundas”, mas melhor ficaria “putas” – advertência procedente de @tuliavianna no twitter), a Marcha das Putas, que reivindica inverter o significante como estratégia de libertação sexual para as mulheres e repudio à violência. A longa história dessa relação – sexo e violência – foi entre outros trabalhada por Sigmund Freud, e talvez haja poucas tarefas mais urgentes para a política do que separar – das formas mais criativas – as duas esferas.
No Brasil, ao contrário, predomina tanto no movimento feminista quanto no LGBTT o viés policialesco do “politicamente correto”. É verdade que Idelber Avelar, e antes dele Renato Janine Ribeiro, nos alerta que o termo faz parte do vocabulário neoconservador justamente com o intuito de inibir a discussão do ponto de vista dos “oprimidos”. Contudo, não podemos deixar de enxergar o ricochete que se produziu a partir do termo, com os movimentos aderindo ao estereótipo e reivindicando – por meio de políticas identitárias – aquilo que lhes era atribuído. Exemplo disso é a constante demanda pela utilização da violência do sistema penal – sobretudo criminalização e carcerização – por esses movimentos.
O que se perde com as políticas identitárias? Primeiro, é preciso ter prudência: ninguém melhor que Derrida soube equacionar bem que o rechaço parcial dessas demandas não pode nos levar, por exemplo, a perceber que há uma falsa simetria entre as duas partes (machista/feminista, homofóbico/ativista gay, racista/ativista negro etc.) e que portanto não podemos, desprezar de antemão tudo que vem desses grupos, mesmo aquilo a quem não estamos de acordo. Porém, como bem percebeu Bruno Cava no twitter, “quando se fecham na identidade, não se movimentam mais, fica estático e proto-fascista. Só a diferença mobiliza o desejo”. É precisamente isso: a identidade fecha novamente no próprio, reestabiliza o sujeito-como-indivíduo-mônada e repete o gesto individualista dos nossos tempos, transformando demandas de justiça em demandas corporativas.
A Marcha das Putas arromba esse horizonte à medida que transforma a luta das mulheres não apenas em luta da identidade-mulher, mas da forma-de-vida que é a raiz da injustiça que sustenta a opressão feminina, justificando das formas mais espúrias a violência por meio da misogenia e da repressão sexual. A fala do policial tem um duplo golpe cuja sutileza as mulheres canadenses perceberam em toda intensidade: defende a violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, estimula o puritanismo que nada mais é do que capa da repressão sexual. Ao usarem o significante “puta” (“slut”) com o intuito transformador, as canadenses não apenas tocam no policial-concreto, mas na própria raiz do problema que possibilitou a esse policial dizer o que disse. Abriram, em síntese, um flanco no poder pelo qual penetrou a vida.
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