“Que se diga: daqui em diante, nenhuma vítima de agressão sexual ousará denunciar seu agressor se ele for uma celebridade, por medo de se ver sob o odioso tratamento a que está submetida a jovem camareira que denunciou Dominique Strauss-Kahn”.
Com essa afirmação, Lysiane Gagnon inicia um artigo publicado no jornal canadense La Presse no último dia 19 de maio. Ao invés de refletir sobre o debate político suscitado a partir da denúncia, as oscilações na bolsa causada pela prisão de um dos homens mais influentes no mundo e a “teoria de complô”, ela apresenta um objetivo muito mais delimitado e inédito: refletir sobre as conseqüências dessa denúncia na vida da própria mulher que a empreendeu.
Segundo Gagnon, “as grandes mídias americanas [leia-se estadunidenses] respeitaram a regra que preserva a identidade das vítimas de agressão sexual (caso contrário, elas seriam acusadas de ultraje na justiça)”. Ainda assim, informações sobre essa mulher foram divulgadas mundialmente, sobretudo pela imprensa francesa: imigrante, 32 anos, mãe, negra, muçulmana. Em relação a esse último aspecto, a articulista considera: “Para os muçulmanos conservadores, uma agressão sexual constitui uma vergonha que recai sobre toda a família e o clã, uma vergonha sobre a qual a mulher é sempre responsável”. Hostilizada, portanto, por diferentes grupos, desde a comunidade américo-guineense às elites francesas, a agredida está sob proteção da polícia e não pode ir a sua casa, nem ao seu trabalho.
A jornalista ainda lembra a frase de um dos advogados de Strauss-Kahn, segundo o qual “ela [a vítima] é muito pouco atraente”, ao que ela acrescenta indignada: “como se apenas as belezas hollywoodianas fossem dignas de serem agredidas por homens conhecidos!”. Para terminar, conclui: “sem a garantia de que elas não serão indevidamente expostas à opinião pública, quantas vítimas de violação ousariam denunciar os seus agressores?”. Acompanho os argumentos da articulista porque considero sua abordagem extremamente relevante para pensar sobre esse e outros casos de estupro, levantando questões sobre denúncia, vergonha e como essas informações são divulgadas pela imprensa.
Ainda que, no futuro, a alegada inocência de Strauss-Kahn venha a ser comprovada, assim como a existência de uma armação para comprometer sua provável candidatura, é essencial lembrar que a dúvida é uma característica recorrente em quase todos os relatos de agressão sexual divulgados pela mídia, nos quais proliferam incertezas sobre o que vem a ser uma agressão desse gênero e sobre o caráter dos envolvidos, sobretudo das vítimas.
O artigo de Gagnon me fez lembrar outra notícia, vinculada na Folha de São Paulo, no dia 18 de fevereiro desse ano, sob o título “Estupro de repórter vira rixa política nos EUA”. Naquele contexto, o alvo do estupro havia sido uma jornalista sul-africana radicada nos Estados-Unidos, Lara Logan, que trabalhava na cobertura da queda do ditador egípicio Hosni Mubarak. Segundo a notícia, “inúmeros blogueiros sugeriram que Logan foi culpada pelo ataque e assumiu o risco como mulher, ‘loira ainda por cima’”, sendo que “outros usaram o episódio para criticar o Egito e os muçulmanos”, além de apresentarem questionamentos sobre se “apalpadelas” configurariam uma agressão sexual (para que não haja dúvidas a resposta é: sim!).
O jornal brasileiro ainda comentou que “muitos culpam a CBS por enviar Logan ao Egito no meio da tormenta”, cogitando a possibilidade de que a atuação de jornalistas mulheres fosse institucionalmente restrita a ambientes seguros. Segundo uma pesquisa da Universidade de Columbia, inúmeras profissionais sofrem abusos em zonas de guerra mas, por serem mulheres, “temem falar a respeito por medo de serem consideradas mais fracas que colegas homens”. Por outro lado, “o Comitê de Proteção de Jornalistas alerta que abusos contra repórteres e ativistas homens também são disseminados em vários lugares, como Irã e Paquistão”.
Na época, fiquei extremamente incomodada com essa notícia, por vários motivos. Apesar de jornalistas de ambos os sexos estarem sujeitos a abusos em zonas de guerra, por que apenas as mulheres deveriam ser alvo de uma proteção especial? No final do século XIX, quando surge a figura do “repórter” na redação dos jornais de grande circulação, sua imagem foi associada à virilidade, como se fosse uma ocupação condicionada por resistência física e psicológica e, em pouco tempo, se tornou um dos cargos mais importantes do jornal. Era, enfim, vista como uma profissão masculina.
É claro que essa distinção foi recorrentemente questionada pela trajetória de mulheres que desempenharam essa função ao longo do tempo, mas a idéia em si parece ter criado raízes. Na verdade, esse tipo de distinção dialoga com uma longa tradição que insiste em buscar evidências para mostrar a incapacidade das mulheres para algumas profissões (ou para qualquer trabalho fora da esfera doméstica). A velha ladainha de naturalizar as diferenças sociais e usar a biologia como prova incontestável de hierarquização das pessoas.
Da mesma forma, o estarrecimento diante da idéia de que mulheres sejam acusadas por “provocarem” seus próprios estupros. As mulheres não são, de forma alguma, vítimas passivas. Mas, ainda assim, são vítimas e é um erro enorme acusar qualquer pessoa, homem ou mulher, de incitar essa prática de violência contra si. Mais constrangedor ainda que esse mesmo argumento tenha sido usado para falar tanto da empregada muçulmana de um hotel de luxo até a repórter loira que atuava como correspondente na Primavera Árabe. Isso ajuda a entender porque o silêncio constitui a única reação de muitas das vítimas de agressão sexual. Mas as experiências degradantes vividas pela camareira e pela jornalista vieram a público e suscitaram o debate na mídia internacional, com conseqüências políticas importantes. Trata-se de casos célebres que, não por acaso, apresentam pontos em comum com outros relatos de estupro, como a da estudante da Universidade Federal do Acre, atacada no último dia 19 de maio.
Esse último crime “causou polêmica” porque, embora colegas e meios de comunicação afirmem que ocorreu um estupro, “os familiares preferiram não registrar queixa” e a universidade divulga que “a garota foi assaltada”. Inúmeras agressões sexuais ocorridas em campus universitário de todo o país vêm ganhando publicidade nos últimos tempos, o que não quer dizer que não existissem antes. É preciso providências urgentes! Mas, por ora, quero refletir sobre a escolha da família dessa jovem. Talvez para preservar a intimidade da vítima diante de uma imprensa sensacionalista, seus parentes preferiram negar o estupro, no lugar de denunciá-lo. Essa hipótese ganha força na medida em que se considera que o culpado não seria encontrado, tão pouco punido, tendo em vista diversos aspectos da realidade brasileira (sociais, culturais, econômicos e por aí vai). Mas há uma questão muito forte, inegável, que envolve honra e vergonha. Assumir que houve um ataque à universitária colocaria em xeque sua moral, assim como de toda a sua família. Mesmo impasse vivido por outras vítimas, pela camareira de Dominique Strauss-Kahn e pela jornalista Lara Logan.
Então, a escolha da família dessa universitária me leva a concluir que todo estupro é político, mesmo que não abale futuras disputas eleitorais, nem gere discussões nos meios de comunicação globalizados. Isso não implica em negar que todo estupro é uma violência, um ato degradante, incondicionalmente condenável. Afirmar que todo estupro é político é dizer que agressores, vítimas, analistas e todos os demais envolvidos se apropriam de diferentes representações e estereótipos de gênero, raça e classe (para citar apenas algumas categorias identitárias) que circulam na sociedade contemporânea. Não raro, notícias e artigos sobre esses episódios tendem a reforçar visões preconceituosas. A contrapartida é que os meios de comunicação também abrem a possibilidade de questionamento e de discussão sobre inúmeras diferenças sociais. As mídias não apenas divulgam denúncias mas podem, eventualmente, abrir espaço para que as vítimas se expressem, se exponham, se refaçam.
Nesse sentido, gostaria de questionar a afirmação de Lysiane Gagnon, com a qual iniciamos esse texto. Será que o caso Dominique Strauss-Kahn, assim como suas repercussões em diferentes instâncias, reforça realmente o silêncio das futuras vítimas de agressão sexual, sobretudo quando agressores são celebridades? Vejamos: a denúncia de uma camareira abalou irremediavelmente a carreira de um homem que, de figura de poder, passou a expressar “vergonha nacional”. Honra e vergonha, valores recorrentemente lembrados nessas situações, sendo mobilizados para avaliar o comportamento do agressor, não apenas das vítimas, como ocorre na maior parte das vezes. Será que, justamente por isso, essa história lamentável não pode ter outros efeitos, como encorajar a romper esse silêncio, colaborando para a afirmação política de homens e mulheres que foram (ou venham a ser) vítimas de agressão sexual?
Vi no TABnarede
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