Por Marcelo Semer
A Marcha da Liberdade pelas ruas de São Paulo, no sábado (28)
(foto: Renan Expedito Falcadi Leite/vc repórter)
A decisão judicial que proibiu a Marcha da Liberdade em São Paulo reacendeu uma velha polêmica: na democracia, podem os juízes assumir o papel de censores?
Com cerca de cinco mil pessoas, a manifestação de sábado último foi palco de uma enorme contradição: vetada expressamente pela justiça, foi acompanhada de perto pela Polícia Militar.
Escaldada com as fortes críticas depois da repressão da Marcha da Maconha, a PM optou dessa vez por não tentar impedi-la.
Mas o ato que se formou pela liberdade de expressão e ganhou ruas do centro de São Paulo com integrantes distribuindo flores, cumpriu apenas metade de sua função. E se os manifestantes quisessem mesmo discutir a legalização da maconha, teriam sido presos por apologia?
Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso anda fazendo coro à tese da descriminalização do uso de entorpecentes, ancorando documentário que está por estrear.
Seria o caso de também processá-lo, ou a censura apenas se restringe a quem se manifesta na rua? O discurso articulado é menos perigoso ou violento que algumas poucas palavras de ordem?
Em artigo que circulou pelas redes sociais na véspera da passeata, a juíza Kenarik Boujikian Felippe expôs com rara felicidade o cerne do direito à manifestação: a questão deve ser resolvida pela Constituição Federal e não pelo Código Penal.
E a Constituição, a lei das leis, estabelece como direitos fundamentais, que não podem ser revogados: o de associação, o de liberdade de expressão sem prévia censura e o de manifestação em local público sem necessidade de autorização.
A decisão paulista, é preciso dizer, não está isolada, nem no tempo nem no espaço. Vem sendo repetida, ano após ano, sempre na proibição da mesma Marcha da Maconha. E o raciocínio da proteção à ordem pública quanto a uma possível apologia das drogas, também já foi aplicado em outros Estados.
A divergência de entendimentos, inclusive, suscitou ação proposta pela Procuradoria Geral da República no Supremo, que em breve poderá ser julgada, dirimindo as dúvidas.
Ao fazê-lo, o STF assinalará um importante paradigma: o papel do juiz no estado democrático de direito.
Acredita-se que nossa Suprema Corte, a julgar por sua jurisprudência mais recente, não se desviará da interpretação de que o juiz é o garantidor das liberdades, não um agente de censura.
Nesta perspectiva, não caberia ao Judiciário nem sequer a tarefa de autorizar manifestações, independentemente de seu tema, quanto mais proibi-las.
Numa passeata, como é próprio dos atos de expressão de opiniões, podem ocorrer delitos de palavra. Mas está distante do papel do juiz criminal, a competência para se antecipar e evitar crimes de qualquer natureza -deve julgá-los sim, quando e se submetidos ao devido processo.
O risco de uma política por assim dizer preventiva é justamente a criação de um órgão censor, que se firme como obstáculo entre o cidadão e a liberdade.
Afinal, ao juiz, como fiel garantidor da Constituição, deveria caber fundamentalmente defender as liberdades, e não dificultar o seu exercício. A rigor, o dilema extravasa o direito à manifestação.
A figura do juiz censor tem mutilado de outra forma a liberdade de expressão: a proibição de espetáculos, livros ou reportagens, sob o fundamento da defesa da reputação e outros direitos da personalidade.
Com tais decisões, magistrados revigoram por vias transversas a censura prévia, expressamente banida pela Constituição Federal.
Em relação a este ponto, o STF deixou passar uma grande oportunidade para abordá-lo, quando lá chegou ação interposta pelo jornal O Estado de S. Paulo, censurado em uma reportagem. Desviou-se do assunto diante de questões processuais.
Espera-se, todavia, que o enfrente em um futuro próximo - estará afiançando dignidade ao mesmo tempo ao Judiciário e às liberdades públicas, que sempre devem andar de mãos dadas.
A sociedade brasileira está se acostumando a conviver com o ativismo judicial.
Os juízes estão se desgarrando das armadilhas do positivismo, justamente para reconhecer a validade dos princípios e dar valor a direitos negados pela omissão dos governos e dos parlamentos, que até então vagavam como letras mortas.
Mas nada indica que estaremos prontos para uma espécie de reativismo judicial - a paulatina desconstrução dos direitos fundamentais em nome da tutela da segurança e do bem-estar.
Afinal, a Justiça está longe de ser uma reencarnação do Departamento de Ordem Política e Social.
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