Gay? Eu?
As primeiras lembranças que tenho da homoafetividade na minha vida são de quando eu estava entre a 5ª e 7ª série. Eu era apaixonada por uma coleguinha de classe, a Fernanda*. Eu ainda não entendia o que essa quase devoção significava. Não entendia mesmo. Eu só adorava conversar e estar com ela. E eu sempre fui uma pessoa que adora presentear aqueles que amo. E com a Fernanda não foi diferente. Quase todos os dia era um presente, ursinhos, livros, CDs, revistas, pôsteres dos Back Street Boys (É, ela gostava deles), do Leonardo Di Caprio e por aí vai (cada geração tem o Justin Bieber que merece), papel de carta, e qualquer coisa com a qual eu pudesse presentear a minha amiga. Mimá-la.
Até que um dia, um dia do amigo, se me recordo bem em que comprei um cartão e um ursinho pra minha amiga. Esse cartão era especial porque vinha com uma cápsula que continha uma espuminha que quando em contato com a água se rompia e a espuma inchava formando uma grande e vermelho ‘eu te adoro’. Eu tinha por volta dos 10-12anos e achava aquilo mágico. Fantástico. Era um belo presente pra minha amiga e ela realmente adorou. No dia seguinte minha querida amiga chegou na escola com o cartão, o urso e o ‘eu te adoro’ rasgado. E me entregou. De acordo com a mãe de Fernanda aquilo não era um presente que uma amiga deveria dar a outra. Que ela não poderia ser minha amiga e que aquele carinho que eu tinha por ela era uma aberração, um pecado e que ela se afastasse de mim. E que ela a partir daquele momento recusasse todos os presentes que eu oferecesse.
Eu acho que nunca chorei tanto na minha infância/adolescência quanto naqueles dias. Eu não entendia porque a mãe dela queria que nos afastássemos. Depois desse episódio, eu tive outros problemas na escola. Alguns meninos me empurravam no corredor, ficavam rindo apontando o dedo e me chamavam de sapatão e eu não sabia ainda o que isso significava. Eu só sabia que eu não queria ser aquilo. Eu não queria aquela definição pra mim.
Eu sempre estudei em escolas da periferia, e vivo ainda hoje na periferia, e sei que a homossexualidade não tem espaço pra aparecer aqui. Não se fala sobre isso, no máximo se usa ‘viado’, ‘bicha’, ‘sapatão’ e ‘traveco’ como forma de hostilizar e agredir alguém. Eu não sabia o que significavam essas palavras, mas sabia que eu não queria ser aquilo. De modo algum.
Desde o dia em que a mãe da Fernanda me denominou como uma aberração, eu só saia de casa pra ir pra escola. Eu desenvolvi uma fobia social tão intensa que quando eu era obrigada a estar em outro lugar que não a minha casa eu começava a tremer, suar frio e não conseguia sequer falar. Pensei em suicídio uma dúzia de vezes. Uma vez peguei uma corda, mas não tive coragem de dar cabo a minha vida. Durante um tempo me cortei, mas não durou muito.
Então eu evitava todo o contato que eu pudesse ter. E isso se estendeu durante grande parte do ensino fundamental, do médio, da época de cursinho e nos primeiros anos de faculdade.
Eu conheci a minha ex-namorada com a qual mantive um relacionamento por 6anos no cursinho. Ela era namorada da minha prima, mas essa história vai ficar pra outro dia.
Meus pais descobriram nosso namoro logo no inicio, acho que a gente namorava há pouco menos de um mês quando minha mãe entrou no meu quarto chorando e me perguntou se eu estava usando drogas, porque eu estava estranha, não saia do quarto, sempre ao telefone com alguém e sempre escondia o telefone. Eu ainda hoje nao sei porque diabos ela perguntou se eu estava usando drogas. Isso é comportamento de viciado? RS… E eu na minha grande inocência disse que não. Eu não estava usando drogas. Eu estava apaixonada. Apaixonada por uma menina. A Ana*.
Naquele exato momento a minha vida se tornou um inferno do qual eu poderia jurar que nunca escaparia.
Meus pais fizeram uma reunião com meus irmãos (todos mais novos) e começaram a me falar que eu estava doente, que eu iria fazer um tratamento. E que além de doença aquilo era um pecado. Foi um dos momentos mais dolorosos da minha vida. Meus irmãos choravam, eu chorava, meu pai me olhava com desgosto. Minha mãe falava coisas irrepetíveis e que eu procurei bloquear durante muito tempo.
[Minha relação com minha família nunca foi fácil. Eu sempre fui a ‘ovelha negra’. Minha mãe casou-se obrigada com meu pai e sempre jogou isso na minha cara. Que ela estava casada por obrigação com alguém que não era o ‘grande amor da vida dela’. Meu pai sempre foi distante. O que eu sei dele? Dizem que somos muito parecidos. ]
Minha mãe me tirou do cursinho, da academia e do inglês. Fiquei sem celular e computador. Fui obrigada a trabalhar no supermercado (que eu sempre vi como um limitador pra minha vida intelectual e como um abismo que teimava em me sugar). Ia pra igreja todos os dias e tinha que rezar com minha mãe em casa, participar do terço e de novenas na casa de parentes e amigos. Em determinado momento desse período ocorreu de um seminarista da comunidade se ordenar padre no Ceará. E minha mãe me arrastou com ela, disse que ia me fazer bem, que seria bom ficar longe pra ‘espairecer’. Foram 8 dias de viagem, 3 pra ir, 3 pra voltar, ficamos dois dias nos confins do Ceará, rezando. E no único dia em que fomos a uma praia eu passei mal. Deveria ser a homossexualidade saindo desse corpo (RS…)? Pra desgosto da minha mãe eu me aproximei muito de uma menina que também viajou com a gente. Ficamos muito próximas nesses 8 dias e eu cheguei a achar (e disse isso pra menina) que estava apaixonada por ela.
Durante aproximadamente 1ano e meio a minha mãe não podia me olhar que chorava e sempre tentava alguma intervenção religiosa pra me curar desse ‘vício’. Me mandou pra análise. Fui uma vez só. Fugi da análise. Eu ia pro cinema (RS..).
Um dia não sei porque ela desencanou. Mantive o namoro com Ana escondido durante todo esse tempo. Só nos primeiros meses nos afastamos, era pesado pra mim.
A primeira vez que fizemos sexo eu me senti tão culpada que quando cheguei em casa comecei a rezar e a chorar. Achei que estava possuída pelo demônio. Juro. A neura durou uns 3 dias.
Voltei pro cursinho, me matriculei na unidade em que Ana estudava… Os pais e a irmã dela me odiavam. A mãe dela chegou a dizer que não me queria na casa dela porque não queria o homossexualismo ali, que isso era uma doença, uma aberração.
Ouvi que sou uma aberração da mãe da Fernanda, da minha mãe, da mãe da Ana, e de muitas outras pessoas durante esses quase 7anos em que sou assumidamente lésbica.
Namoramos cerca de 6anos assim. Nunca pude expressar afeto por Ana em público. Ela nunca se assumiu. E sofria com isso cotidianamente. E eu também.
Quando entrei pra faculdade tive problemas por causa da minha homossexualidade. Alguns colegas de classe descobriram a minha homossexualidade e passaram a cochicar sobre isso. Certa feita eu ouvi comentários sobre mim no banheiro. Eu estava num dos boxs quando algumas meninas falavam sobre a minha ‘anormalidade’. Permaneci ali. Imóvel. E arrasada por algum tempo. Durante quase dois anos eu só mantive contato com duas ou três pessoas da minha classe.
Acho que o que me salvou da fobia social que ainda me encontrava foram as pesquisas que eu comecei a desenvolver justamente sobre a homossexualidade e a homofobia. Comecei a participar do GUDDS!. Até entrar pro GUDDS! os únicos gays que eu conhecia eram minha namorada e um amigo dela. O GUDDS! e as pesquisas me abriram um novo horizonte.
As pesquisas foram fundamentais na minha vida. Eu que sempre quis mudar o mundo achava que através delas eu poderia desconstruir o preconceito que me rondava e me limitava. Eu queria um mundo melhor, onde a minha namorada não sofresse preconceito e não tivesse vergonha de ser quem ela era. Nesse momento da minha vida eu pensava mais nela do que em mim. Porque a homofobia limitava muito mais a vida dela. Os meus pais já sabiam. Os dela não. A pressão que ela sofria era infinitamente superior a qualquer discriminação que eu sofria na rua. E eu já sabia o que era aquilo. Já tinha sofrido isso.
Terminamos o namoro 1 ano antes da minha formatura. Nesse período conheci outras pessoas gays além das do GUDDS!, comecei a me envolver com movimento social, entrei pro escritório de direitos humanos. Comecei a namorar uma pessoa mais velha e que já tinha passado por todo esse processo com a família. No começo era difícil pra mim expressar afeto em público, o que chocou ela e os amigos. Namoramos por uns 3 meses, e ela dançou a valsa comigo no baile de formatura. Meus pais já tinha ido embora… Acho que minha mãe me viu beijando a ex-namorada e disse que ia embora pra eu poder ‘aproveitar’ melhor a festa.
Atualmente minha mãe mostra meu álbum de formatura e aponta as minhas ex-namoradas. E usa essas palavras: ‘Essa é fulana, ex-namorada da Érika’
Meus ouvidos ainda não se acostumaram a ouvir a minha mãe falando das minhas ex-namoradas pra outras pessoas.
*Nomes fictícios, a Ana, por exemplo, me odeia hoje. Poderia me processar rs…
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