quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A infantaria antiaborto: há 30 projetos de lei que, entre outras medidas, pedem a inclusão do aborto no rol de crimes hediondos

A infantaria antiaborto: há 30 projetos de lei que, entre outras medidas, pedem a inclusão do aborto no rol de crimes hediondos

Rodrigo Martins Na CartaCapital



No Congresso, há mais projetos para aumentar as punições e restringir a opção da mulher do que o contrário. Foto: Alan Marques/Folhapress
Desde o fim da ditadura, a pauta antiaborto nunca esteve tão forte no Congresso. Ao todo, há 30 projetos de lei que, entre outras medidas, pedem a inclusão do aborto no rol de crimes hediondos, o endurecimento das penas aplicadas às mulheres que interrompem a gravidez ou aos profissionais de saúde que as auxiliem, bem como a oferta de pensão à mãe que abdicar do direito de abortar em caso de estupro ou o reconhecimento da vida desde a concepção, o que, em tese, inviabiliza as pesquisas com células–troco embrionárias, liberadas pelo Supremo Tribunal Federal em 2008.
Na outra ponta, apenas um projeto prevê uma legislação mais branda. Apresentado em 2004, ele admite o aborto em caso de anomalia fetal, tema sobre o qual o STF deve se pronunciar antes do Legislativo. Nenhuma proposta prevê o abortamento sem restrições dentro de determinado tempo gestacional, como ocorre nos Estados Unidos e na maioria dos países da Europa Ocidental.
Além disso, após a conturbada eleição de 2010, o governo federal decidiu -reti-rar-se de qualquer discussão sobre mudanças no marco regulatório. “A sociedade brasileira não amadureceu o debate sobre o tema e não faz sentido propor mudanças na lei a favor da descriminalização do aborto. Tampouco vamos compartilhar de qualquer agenda que proponha endurecimento de penas ou reforce a lógica punitiva”, diz o secretário nacional de Atenção à Saúde, Helvécio Magalhães. “Nosso foco é investir no planejamento familiar e orientar a rede pública a oferecer atendimento humanizado às mulheres que abortaram, independentemente de a prática ter sido legal ou não.”
Diante do avanço da agenda conservadora, pesquisadores e movimentos feministas organizam um abaixo-assinado- contra o que chamam de “retrocesso em matéria de direitos sexuais e reprodutivos”. Questionam, sobretudo, a tentativa de acrescentar ao artigo 5º do texto constitucional a expressão “desde a concepção” na parte que trata da inviolabilidade do direito à vida. A iniciativa, avaliam, “pode criar barreiras desnecessárias para o acesso à contracepção e à anticoncepção de emergência.”
A medida está contemplada no projeto do Estatuto do Nascituro, que prevê a possibilidade de o Poder Executivo conceder pensão à mãe que -mantenha a gravidez decorrente de estupro até que o filho complete 21 anos. O texto, relatado pela deputada Solange Almeida (PMDB-RJ) na Comissão de Seguridade, encontra–se agora na banca de Finanças. “A sociedade está dizendo que não aceita o aborto”, observou a relatora.
A Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro preparou, porém, um parecer contrário ao projeto para apresentar ao Congresso em breve. “A proposta atropela princípios ético-jurídicos e legitima a violência contra a mulher, ao se propor que ela seja ‘paga’ pelo Estado para ter um filho gerado por estupro”, diz Maíra Fernandes, presidente da comissão de bioética da OAB-RJ.
De acordo com Sônia Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, as iniciativas não são novas. Em 1988, grupos conservadores haviam tentado, em vão, incluir no texto da Constituição a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Em 1995, a bancada religiosa apresentou proposta de emenda constitucional para, outra vez, tentar criminalizar o aborto em qualquer circunstância. A PEC foi rejeitada em abril de 1996, com 351 votos contra e 33 a favor. Em 2003, o ex-deputado Severino Cavalcanti fez nova proposta com teor semelhante, arquivada em 2007. “Parlamentares católicos, evangélicos e espíritas se unem nessa pauta e, a cada legislatura, reapresentam projetos outrora rejeitados”.
Entre 2004 e 2005, o presidente Lula encampou o debate com a formação de uma comissão tripartite, com representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil. O comitê propôs uma legislação que permitia o aborto até os três primeiros meses de gestação. Desgastado com as denúncias do mensalão, o governo recuou na hora de apresentar o texto ao Congresso. Coube à deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) bancar a proposta na forma de projeto substitutivo, que acabou arquivado.
“A lei pretende inibir o aborto, mas isso não ocorre na prática. Trata-se de uma política criminal inócua. A mulher interrompe a gravidez de qualquer jeito, em clínicas clandestinas ou sozinha. Isso expõe a mãe a riscos desnecessários, sobretudo as mais pobres”, comenta o advogado Pedro Abramovay, secretário nacional de Justiça à época em que o projeto foi apresentado.
Todos os anos, o Sistema Único de Saúde interna mais de 200 mil mulheres para realizar curetagens ou tratar complicações decorrentes de abortos, boa parte deles, senão a maioria, por procedimentos não autorizados pela lei. Os abortos mal-sucedidos matam 3,4 mulheres para cada 100 mil nascidos vivos e são uma das cinco principais causas de morte materna do País. Além disso, estudo da Universidade de Brasília (UnB), divulgado em 2010, revela que uma em cada cinco brasileiras já abortou na vida. Dentre elas, 29% têm mais de 30 anos, 64% são casadas e 81% têm filhos.
“Até quando vamos fingir que esse problema de saúde pública não existe?”, pergunta a advogada Beatriz Galli, integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. “Hoje, em Mato Grosso do Sul, continuam- a ocorrer mais de mil processos contra mulheres que realizaram abortos desde o estouro de uma clínica clandestina em 2007, todas ela perseguidas após a polícia violar o sigilo dos prontuários médicos.”
A persistência dessa lógica punitiva, avalia Galli, representa um descumprimento de acordos assumidos pelo Brasil, como as diretrizes aprovadas pelas Nações Unidas nas Conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), nas quais os -países assumiram o compromisso de encarar o aborto como tema de saúde pública e de rever as leis punitivas. Hoje, 61% da população mundial vive em nações que preveem o aborto sem restrições até certo período da gestação, segundo o Center for Reproductive Law and Police.
Com o crescimento da bancada religiosa no Congresso – que aumentou sua representação em mais de 50% nas últimas eleições –, a perspectiva de legalização do aborto está distante. “A Frente Parlamentar em Defesa da Vida está inundando a Câmara de projetos retrógrados para evitar qualquer ampliação do debate. A verdade é que os deputados mais progressistas se sentem até acuados, porque somos rotulados como assassinos por muitos colegas”, reclama o deputado Dr. Rosinha (PT-PR). “Sou cristão e contra o aborto. Mas não faço legislação para mim.”
“A esperança, agora, é com o avanço desse debate nos demais países da América Latina. A Cidade do México liberou o aborto recentemente. A Argentina está prestes a votar uma legislação mais permissiva. Espero que o Brasil siga o exemplo dos países vizinhos e pare de criminalizar as mulheres”, avalia Maria José Rosado, da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.

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