Desirèe Luíse
Do Portal Aprendiz
Na busca do ideal de educação fundamentada na democracia e na tolerância, Paulo Freire fez história. Em pleno século XXI, a proposta do educador brasileiro está presente tanto no legado de suas obras como na atualidade de seu pensamento. Nesta segunda-feira (19/9), Paulo Freire completaria 90 anos. Comemorações do seu nascimento acontecem desde o início do ano em todo o país.
Internacionalmente respeitado, os livros do educador foram traduzidos em mais de 20 línguas. No Brasil, tornou-se um clássico, obrigatório para qualquer estudante de pedagogia ou pesquisador de educação. Detentor de pelo menos 40 títulos honoris causa (por universidades a pessoas consideradas notáveis), Freire recebeu prêmios como Educação para a Paz (Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (Organização dos Estados Americanos, 1992).
“Defendo a educação desocultadora de verdades. Educando e educadores funcionando como sujeitos para desvendar o mundo”, dizia Freire.
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A educação como prática da liberdade, defendida por ele, enxerga o educando como sujeito da história, tendo o diálogo e a troca como traço essencial no desenvolvimento da consciência crítica.
Uma pesquisa sobre o educador feita em escolas públicas de São Paulo a partir dos anos 90, pela Cátedra Paulo Freire (PUC-SP), constatou que aquelas baseadas em gestões democráticas são as que mais se aproximam do pensamento freireano. “Suas reflexões servem de base para discutir os desafios do mundo”, afirma a coordenadora da Cátedra, Ana Maria Saul, que trabalhou com o educador entre 1980 e 1997.
Freire se mantém presente também na universidade. Uma consulta na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) revela que entre 1987 e 2010, 1441 pesquisas tiveram como referencial o educador – 75% na área das ciências humanas, 19% na biológicas e 6% na exatas. “Esses números, que têm crescido a cada ano, e a diversidade de áreas mostram como é fértil a reflexão de Paulo”, aponta Ana Maria.
Atualidade do pensamento
“Ele usava o passado para interpretar melhor o presente. Tenho certeza que Paulo já estava no século XXI pelos questionamentos que colocava. Dizia: ‘se vocês concordam comigo, não me repitam, recriem’”, lembra a coordenadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Lisete Arelaro. Ela trabalhou com Freire durante os anos 90 e ministra a disciplina eletiva “Paulo Freire: Teoria e Práxis”.
A atualidade do autor é comprovada, por exemplo, em uma das questões que mais perturba a educação pública hoje: o uso de apostilas como o único material didático. “Discordo de separar pacotes para o professor dar aulas, com materiais distantes da realidade. Precisamos da curiosidade crítica”, questionou Freire certa vez.
“Paulo falava que não existe uma teoria científica dizendo que o aprendizado pode acontecer apenas de um determinado jeito, ou parâmetros regulando o que cada criança deve debater no Pará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia, sem os contextos de cada uma”, diz Lisete. “Se vivo estivesse, faria uma campanha na rua, porque isso compromete o ato de aprender”, analisa.
Antes de conhecer, o sujeito se interessa pelo o que é curioso e esperançoso, dizia Freire. “Daí a importância de trabalhar a sedução do professor frente ao aluno, a motivação e o encantamento”, pontua o diretor do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, que conviveu 23 anos com o educador.
É preciso mostrar que “aprender é gostoso, mas exige esforço”, segundo o educador no primeiro documento que encaminhou aos professores quando assumiu a Secretaria de Educação do Município de São Paulo (1989-1991). Hoje, um dos maiores problemas do ensino médio é a evasão escolar. Cerca de 40% dos jovens abandonam a última etapa da educação básica por desinteresse, apontam pesquisas.
Em conferências para professores, Gadotti identificou que há uma ânsia por entender melhor porque está tão difícil educar, para saber o que fazer quando todas as receitas já não conseguem responder. “Professores procuram cada vez mais cursos e conferências, para buscar na formação continuada respostas que não encontram na formação inicial”, afirmou em artigo “A atualidade de Paulo Freire”.
O educador dava muita importância para o ato de ensinar e aprender de forma horizontalizada. “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, reflete Freire em sua obra “Pedagogia da Autonomia”. Segundo ele, não só a participação dos alunos na sala de aula é bem-vinda, mas no conjunto de assuntos que envolvem toda a escola.
“A gestão democrática fundamenta toda a sua teoria do conhecimento. A ideia é ter diferentes grupos para opinarem e construírem. Para ele, todos os espaços de convivência educam para adquirir nossa autonomia intelectual”, ressalta Lisete. “Estamos em momentos difíceis. Cada dia mais indo contra isso. A divergência da teoria do outro não tem gerado um debate saudável.”
Com suas ideias inovadoras, Paulo Freire também incomodava muito. Mesmo atualmente, é questionado pelo incentivo a uma “pedagogia sem hierarquia”. Uma das razões é sua proposta do uso da crítica como referência principal para a escola avaliar a importância do conteúdo ensinado.
“No momento em que estamos discutindo a homogeinização de currículos pedagógicos, em função de provas nacionais, estaduais e municipais, evidentemente que Paulo representa uma contra corrente”, afirma Lisete. No Plano Nacional de Educação (PNE), em análise no Congresso, está previsto a incorporação do Programa Internacional de Avaliações de Alunos (Pisa) como referência de avaliação.
Freire questionaria, ainda, o processo de bonificação dos professores tendo em vista o rendimento dos alunos em provas nacionais e estaduais, de acordo com Lisete. “Para tudo isso ele não só sorriria, mas diria que é um grande equívoco”, acredita.
Biografia
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Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife (PE), teve dois casamentos e cinco filhos. Formou-se em direito, mas começou sua vida profissional como professor de língua portuguesa.
Quando criança, depois de passar fome por causa da crise de 1929, mudou-se de Recife para o interior. Foi em Jaboatão – 18 km da capital pernambucana – que o contato com a pobreza ficou mais forte. “Lá, aprendi, em primeiro lugar, a ampliar o meu mundo. Fiz amigos filhos de camponeses ou trabalhadores urbanos”, conta Freire em depoimento para o Museu da Pessoa em 1992.
“Eu me perguntava e tentava entender porque eu não comia e os outros comiam. Quer dizer, desde tenra idade eu me preparava para me opor às injustiças sociais. Quando adulto, comecei a me lançar no esforço político-pedagógico e então tudo isso veio à tona.”
Sem oportunidades, ele entrou tarde na escola. Enquanto colegas se preparavam para a universidade, Freire, aos 16 anos, começou a estudar o primeiro ano do antigo ginásio – correspondente ao 5º ano do ensino fundamental. “Mas, não acho que perdi tempo. Eu estava educando-me no mundo.”
A partir de suas primeiras experiências como professor, em Angicos (RN), em 1963, quando ensinou 300 adultos a ler e a escrever em dois meses, Paulo Freire desenvolveu um método inovador de alfabetização. Então, um dos ministros do governo João Goulart, Paulo de Tarso, o chamou para implantar o Plano de Alfabetização Nacional, que acabou sendo abortado pelo golpe militar.
Acusado de subversão, o educador passou 72 dias na prisão e, em seguida, partiu para o exílio. No Chile, trabalhou por cinco anos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária. Nesse período, escreveu o seu principal livro: Pedagogia do Oprimido (1968). Em 1969, lecionou na Universidade de Harvard (EUA), e, na década de 1970, foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça).
Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil. Lecionou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, foi secretário de Educação no município de São Paulo, na prefeitura de Luíza Erundina.
Após a morte de sua primeira mulher, casou-se com uma ex-aluna, Ana Maria Araújo Freire. Com ela viveu até morrer, vítima de infarto, em São Paulo, no dia 2 de maio de 1997, aos 75 anos.
O homem
“Quando Erundina o chamou para ser secretario, vi a coerência de seu pensamento e sua prática”, lembra a coordenadora da Cátedra, Ana Maria Seul. Lisete Arelaro concorda: “Ele faz muita falta, era extremamente bem humorado e tinha uma tranquilidade por sua coerência. Produziu seus conhecimentos para os condenados da terra e esfarrapados do mundo”.
“Se vivo fosse, seria um velhinho bondoso. Foi um homem que sabia escutar. A sabedoria que tinha é consequência do que construiu nele mesmo: as virtudes mais humanas”, diz a viúva do educador, Ana Maria Freire, autora do livro “Paulo Freire – Uma História de Vida”.
Ao se perguntar se Paulo nasceu com os pontos positivos ressaltados por aqueles que conviveram com ele, Ana Maria responde: “Ele dizia que nascemos com algumas tendências. O que nos faz ser isso ou aquilo são as condições sociais na família, escola e sociedade. Ele não teria sido o que foi sem Jabotão”.
Paulo Freire do futuro
O educador centrou suas análises na relação entre educação e vida, reagindo às pedagogias tecnicistas de seu tempo. “Gostaria de ser lembrado como alguém que amou a vida”, disse duas semanas antes de falecer, em entrevista à emissora Globo.
“Creio que o reconhecimento da importância de sua obra no campo da educação acontecerá quando a escola deixar de ser confinada no seu espaço para reconhecer a educação ao longo da vida, o que significa reconhecer que ela é essencialmente informal. Freire não pode ser considerado uma contribuição ao passado, mas ao futuro”, conclui o diretor do Instituto Paulo Freire, Gadotti.
As lições que Paulo Freire deixou devem mesmo continuar válidas por muito tempo. “O meu sonho pela liberdade me estimula a lutar pela justiça, pelo respeito ao outro e à diferença. Quer dizer, meu sonho é que inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje”, disse em 1992.
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