terça-feira, 18 de outubro de 2011

Luta: substantivo feminino

Luta: substantivo feminino


No Sem Juízo, Marcelo Semer

Livro resgata história de mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura



Luta, substantivo feminino (Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura) - coleção "Direito à Memória e à Verdade"


“Se você sair viva daqui, o que não vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou Jesus Cristo”.

Maria Luíza Flores da Cunha Bierrenbach estava formada havia menos de um ano e trabalhava como advogada de presos políticos no escritório de José Carlos Dias, quando foi presa em novembro de 1971, em São Paulo. Ouviu o alerta do torturador enquanto ele girava a manivela que acionava os choques elétricos.

Foi por suas mãos que recebi, recentemente, o livro “Luta, Substantivo Feminino – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura”. 

O livro vem a ser o terceiro produto do relatório “Direito à memória e à verdade”, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Política para as Mulheres do governo federal, em 2010. 

Mais do que apenas documento histórico, trata-se de um relato chocante e tenebroso, com as narrativas sobre mulheres mortas e desaparecidas pela ditadura, entremeadas por depoimentos daquelas que foram torturadas e sobreviveram. 

Tão assustadora, quanto necessária, a verdade dói e transforma. Ninguém que tenha contato com os detalhes sórdidos destes escaninhos da repressão pode se manter intocado ao sofrimento.

Diante de atos de tamanha desumanidade, a impunidade dos torturadores e o silêncio sobre seus crimes se apresentam como verdadeiras penas acessórias. 

O esquecimento tortura a memória, tal como os corpos doídos, mutilados e ocultos das vítimas.

Nilcéia Freire, ex-ministra que apresenta o livro, ressalta que as mulheres são personagens praticamente inexistentes nos compêndios de história: “nos retratos oficiais, nossos heróis têm, quase sempre, barba e bigode”.

O livro pretende resgatar parte desse déficit e sua compilação acaba por nos mostrar uma verdade cruel e dolorosa: é contra as mulheres que a tortura adquire seu formato mais atroz, sua faceta mais desumana: “Para fazer de uma mulher uma vítima de tortura é preciso não apenas que seu algoz retire dela toda a sua dignidade como ser humano, mas que estraçalhe a sua ‘humanidade feminina’, que retire do corpo a ser supliciado qualquer traço de relação com os outros corpos femininos que o remetem ao aconchego e ao afeto maternal”, conclui Nilcéia.

Os depoimentos comoventes e os relatos constrangedores demonstram com precisão esse destroçar do feminino.

Sessões de interrogatórios em que as vítimas são mantidas sempre nuas, choques preferencialmente nas partes íntimas, as mais diversas e abjetas violências sexuais com as quais os torturadores expunham seu grotesco sadismo. Abortos forçados, ameaças de torturas aos filhos pequenos e uma constante humilhação do materno, que bem se expressou no pungente relato de Maria Amélia de Almeida Teles: 

“A pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala, quando eu estava na cadeira do dragão; Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques. Quando me viu, minha filha perguntou: ‘Mãe, porque você está azul?”

O objetivo da tortura, conta Eleonora Menicucci de Oliveira, “era destruir a sexualidade, o desejo, a autoestima, o corpo”. Vilipendiar você como pessoa, que seu corpo e sua vontade percam o controle e você se sinta um montão de carne, ossos, merda, dor e medo, resume Lilian Celiberti.

Há ainda outro aspecto revelador nestes relatos sobre as mortas e as desaparecidas da ditadura. 

Quando se debruçou nos pedidos de indenizações, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) desmontou as versões oficiais que inseriam vítimas em acidentes de trânsito ou tiroteios. 

Em vários casos, a exumação dos corpos, estudo das perícias nos locais dos eventos e relatos de testemunhos puseram ao chão, sem grandes dificuldades, as conclusões oferecidas pelos agentes do Estado para esconder os inequívocos atos de repressão. 

Violências policiais mascaradas como “autos de resistência”, infelizmente, não são apenas esqueletos no armário. 

Se a vítima preferencial das torturas hoje não é mais o militante político, isso não significa que os abusos desapareceram. 

Casos de agressões a jovens pobres, simulação de conflitos e altíssimo índice de homicídios ainda são frequentes na atividade policial. 

A impunidade dos crimes da ditadura, em grande parte pelo desprezo do STF à jurisprudência internacional dos direitos humanos, e a opacidade dos arquivos da repressão, são combustíveis indispensáveis para a perpetuação desses abusos. 

Por isso se faz tão necessário o resgate da história, o encontro do país consigo mesmo. Para entender porque nascem e como perduram tais mazelas.

As inúmeras concessões realizadas no projeto recente da Comissão da Verdade, todavia, deixaram mais dúvidas do que certezas quanto ao real intuito de levar ao conhecimento de todos, o pesadelo dos anos de chumbo. 

Retroagir o período de apuração a 1946, tornar sigiloso o que por natureza deva ser público, estipular tempo e pessoal reduzido para uma apuração tão complexa, impedir de ofício o trânsito das revelações justamente a quem pode investigá-las. 

Não é injustificado o receio de que a comissão encerre assim uma tarefa meramente formal.

Que o exemplo das mulheres retratadas nessa publicação sirva para recuperar o resgate da memória e da verdade, substantivos tão femininos como elas. 

E que consigamos compreender que não se constrói democracia com tibieza, transparência com segredos ou paz sem justiça.

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