domingo, 6 de novembro de 2011

Lula, o SUS e aquilo que se prefere não discutir

Lula, o SUS e aquilo que se prefere não discutir


por Daniel Diniz no Te pego pela história



Não parece haver maldade na sugestão, atualmente muito em voga, de que o ex-presidente Lula trate de sua doença no SUS (Sistema Único de Saúde). Há inocência. (Tudo bem que uma inocência mesclada com boas doses de revanchismo, cinismo, rancor e desinteligência, mas a inocência nem sempre é uma virtude…). É uma sugestão baseada em premissas falsas ou equivocadas, quando não as duas coisas juntas, que mais dizem sobre quem sugere do que sobre aquele a quem se dirige a sugestão.
A primeira premissa sutilmente inferida relaciona-se à capacidade do ex-presidente, de origem reconhecidamente humilde, arcar com suas despesas médico-hospitalares. Confunde-se, maldosa e maliciosamente, origem com destino. Lula teve berço humilde, sim, mas construiu carreira de sucesso antes, durante e após a presidência da república. Antes dela, foi líder sindical e presidente do Partido dos Trabalhadores por muitos anos, recebendo obviamente salário por isso. Quando presidente, tinha institucionalmente seus gastos cobertos pela instituição – como ocorre a qualquer chefe de governo do mundo – além de perceber um salário confortável, porém relativamente pequeno se comparado com outras lideranças do mundo democrático (estima-se, conservadoramente, que o salário anual do presidente dos EUA é de cerca de 500 mil dólares, ao passo que atualmente a presidente Dilma recebe cerca de 200 mil dólares anuais gozando de reajuste concedido quando do início de seu governo. A média salarial de Lula foi algo em torno de 80 mil dólares anuais). Concluído seu governo, Lula passou a ser remunerado pelas palestras proferidas. Em maio passado, por exemplo, uma única palestra do ex-presidente na Coréia do Sul, a convite da LG Eletrônicos, valeu 500 mil dólares. Ou seja, se originalmente Lula era pobre hoje já não mais o é. Ao invés de críticas, deveria receber aplausos dos liberais de plantão uma vez que representa aquilo que faz sorrir qualquer neoliberal: um self-made-man.
A segunda premissa da sugestão, menos sutil e mais inconseqüente, relaciona-se à possibilidade do Estado honrar com os compromissos médico-hospitalares do ex-presidente, apontando para o suposto absurdo da situação. Conclusões como “e nós pagamos a conta” e congêneres pululam nas redes sociais, nos comentários dos textos publicados na internet e na rua, de forma disseminada na boca da contrariada classe média. Parece mesmo ser um abuso que o Estado arque com as contas de um ex-presidente, como se não fosse institucionalmente a obrigação do Estado custear segurança e saúde para aqueles que serviram o país no seu posto principal. Pode-se detestar Lula, FHC, Sarney e Collor, pode-se ter horror à Dilma ou sentir-se ultrajado com o Itamar, mas eles merecem, e Itamar merecia, tratamento de Chefe-de-Estado. Isso implica dizer que, na República, alguns membros da sociedade se lançam ao desafio de coordenar o processo político, cuidar da administração, zelar pelo bem comum. Pode ser que um ou outro não o faça a contento; pode ser que nenhum, num específico período, cumpra com êxito a missão. Mas isso não muda o caráter institucional do posto que determina, sim, que um elemento representativo dessa comunidade doou-se à organização e bom funcionamento dessa sociedade, sendo detentor de conhecimento e experiência ímpares na condução do Estado e, por isso, são indivíduos que devem ser protegidos por esta sociedade.
A terceira premissa que baseia a sugestão de que o ex-presidente deva se tratar no Sistema Único de Saúde relaciona-se ao fato de que Lula, quando presidente da República, não investiu o suficiente para transformar o SUS numa maravilha da medicina moderna. Esta premissa é paradoxal, dados os desejos da classe média brasileira. Em primeiro lugar, acredita-se que a saúde pública é um fiasco por conta da carência de investimentos públicos. Todo mundo, se perguntado, é favorável ao acréscimo do investimento público em saúde, educação, cultura, etc, etc, etc, e mais esse conjunto de platitudes que significa ser “gente boa”. (É sempre bom ver alguém ecologicamente comprometido: quanto mais próximo de uma ONG ligada aos verdes, mais potente é seu jipe!) Mas investimento público decorre de dinheiro público e este provém, oras, dos impostos. E toda a classe média, a elite e boa parte dos demais adoram reclamar da carga de impostos. Todo mundo adorou quando caiu a CPMF que o Governo queria que se tornasse taxa e, por definição, atrelada aos investimentos em saúde pública. A oposição, que sempre se posicionou contrária ao atrelamento da receita, foi contra e derrubou a CPMF, fazendo festa. A oposição derrubou a CPMF, que iria integralmente para a saúde, todo o eleitorado achou maravilhoso não mais pagar aqueles centavos que representavam a CPMF no extrato de um cidadão comum, a mídia disse que isso desonerava os preços (mas os preços não caíram e ninguém disse mais nada sobre isso) e o culpado pelo baixo investimento é o Lula que, no Governo, tentou aprovar a CPMF atrelada ao orçamento da saúde. Mas, o paradoxo dessa premissa está no fato de que toda a classe média acredita, piamente, que a medicina privada é que é excelente. Logo, por que ela não defende de uma vez a opção privada para todos, inclusive para o ex-presidente da república?
A quarta e última premissa que baseia a sugestão de que Lula se trate de sua doença pelo SUS relaciona-se ao fato de que ele foi presidente da república e elogiou o SUS por várias vezes, tendo mesmo chegado a concluir, certa feita, que o sistema chegara à excelência. É uma espécie de castigo, de chance de fazê-lo provar de sua própria ironia – como se realmente ele tivesse sido irônico. “Vá lá, Lula, ver como é bom o sistema que você elogiou”. Essa é a parte da ignorância pura e simples. Assim o é pois ignora alguns elementos centrais da discussão. O SUS é, sim, um modelo de financiamento público da assistência à saúde da população. Todos o utilizam no país, direta ou indiretamente. Indiretamente, por meio por exemplo da Vigilância Sanitária, a ele condicionada, por meio das campanhas públicas de combate às DSTs, ao câncer em suas várias modalidades, ao fumo, dentre outras. Diretamente por que qualquer doença mais grave levará qualquer plano de saúde a encaminhar o paciente para o Sistema. Alguém com câncer, por exemplo, dependendo da complexidade da evolução do quadro, acabará sendo tratado em um hospital público, com remédios adquiridos pelo SUS, valendo-se de aparelhos também adquiridos pelo sistema público. Isso por que os planos de saúde existem para lucrar e não para investir em medicamentos e aparelhagens caríssimos, que vão diminuir sua lucratividade. (Tanto assim que não há um só plano que arque com os custos do coquetel para o tratamento da AIDS, quem o faz é o Governo).
É curioso o mecanismo dos planos, que a classe média tanto defende. Eles cobram fortunas em suas mensalidades, pagam pequenos valores por exames e consultas, lotam seus hospitais particulares, e encaminham seus pacientes quando a situação fica delicada. Depois, entram na justiça contra o SUS para não reembolsar o Estado, baseados naquilo que a Constituição garante: o direito à saúde de todo o cidadão brasileiro. Os hospitais dos planos de saúde, bem como suas clínicas, seus laboratórios e todos os demais serviços, sempre estão sobrecarregados e o atendimento é sempre muito, muito aquém de qualquer excelência. Basta tentar agendar uma consulta simulando, na primeira vez, ser cliente de um plano de saúde e, na segunda, pagamento particular para perceber a diferença no atendimento e na agilidade para agendamento de data.
Pode-se argumentar, então, que o SUS somente é bom no topo do atendimento – notadamente no tratamento de enfermidades graves que requerem especialização, aparelhagem e medicamentos sofisticados – e péssimo na base, quando da entrada do doente no sistema, com prontos-socorros e clínicas insuficientes, médicos mal-remunerados, etc. Nessa base, a medicina privada (por meio dos planos de saúde) atenderia melhor. A questão é: existe no Brasil, hoje, medicina privada? Podemos sugerir que muito pouca ou quase nenhuma. Tanto os planos de saúde como os gastos privados com saúde podem ser abatidos do imposto de renda. O Estado, assim, repassa ao cidadão o direito de escolher o plano de saúde ou o profissional de saúde que melhor lhe convier para, ao fazer o pagamento e depois abatê-lo no IRPF, transferir um quinhão do dinheiro público. No limite, a maioria absoluta do financiamento do sistema de saúde no Brasil é, portanto, público. E um dos maiores drenos do capital público que deveria ser investido no SUS é o abatimento permitido no IRPF para gastos com saúde (o que também ocorre com educação). Vivemos, então, uma situação muito peculiar: aquele mais pobre que paga seus impostos sobretudo por meio da contribuição involuntária do comércio (o ICMS ou o ISS, por exemplo), não pode abater nenhum gasto com saúde privada, nem mesmo o plano de saúde se o pagar. Ao mesmo tempo, ele fica relegado ao frágil atendimento do SUS na porta de entrada, por que carente especialmente de maiores investimentos. Já a partir da classe média, que paga IRPF e, portanto, pode se valer do abatimento de gastos com saúde e educação, opta-se pelo plano de saúde, que não deixa de ser financiado pelo dinheiro público, para a porta de entrada mas, quando se precisar de qualquer atendimento mais sofisticado, se cairá no SUS, encaminhado pelo próprio plano de saúde, onerando duplamente o sistema.
A sugestão de que Lula se trate no SUS, se aceita, revelaria inclusive que o ex-presidente poderia contar com o Instituto Nacional do Câncer, referência no tratamento desta insidiosa doença, assim como demonstraria a excelência do Sistema, especialmente no tratamento de casos complexos. No limite, a inocência daqueles que sugerem que Lula se trate no SUS é bem-vinda. Expõe, como em raros momentos, a fragilidade do raciocínio de setores de nossa sociedade no que concerne aos direitos inalienáveis de nosso povo bem como abre espaço mais que pertinente para se levantar a bandeira da nacionalização e estatização completa do serviço de assistência à saúde no Brasil.



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