Vi no Quem?
Por Artur da Távola – O Globo – 26 de Dezembro de 1984
Desde que, principalmente a partir da década de 50, o mundo começou a mudar muito rapidamente, para nós, pobres poetas, várias categorias se alteraram. Surgiram atropelos de vivências, alterações de tempos exteriores e interiores, dolorosa superposição de impermanências e a mais implacável das saudades: a saudade do recente.
Quando eu era pequeno ou rapaz, as pessoas “eram” e “estavam”. O meu vizinho trabalhava num lugar. Tinha seu nível de vida e ele o acompanhava existência afora. Remediado, se dizia. E um remediado (quanto conformismo nessa expressão!…) era até um cara com seu razoável “statuszinho”, expressão que nada tem a ver com tatuzinho. Não haver inflação descomunal ajudava a estabilidade das vidas.
As pessoas “eram” e “estavam”. No mundo contemporâneo o que mudou não foi o ato de mudar (o mundo sempre mudou em muda mutação) foi a velocidade da mudança. Deixaram, então, as pessoas de “ser” com a segurança e a serenidade que isso implica e passaram a “viver sendo”, isto é, desempenhando vários papéis ao mesmo tempo. “Viver sendo” para enfrentar a vida é muito mais fundidor de cuca do que simplesmente “ser” o que se “é”.
Elas também deixaram de “estar”. Dizem os sociólogos que a mobilidade intensa é uma das características dos dias de hoje. “Estar” implica algo sólido. Significa falta de pressa, um deixar-se pesado e definido no lugar ocupado pela massa do corpo. “Ali morava fulano” Essa expressão indicava que ali “era” e “seria” sempre a casa de fulano. Ele “estava” ali e, pronto, ninguém discutia. Ali “era” a casa do fulano e estamos conversados. Hoje ninguém “está”. Este verbo agora não vale mais sozinho, sempre atenuado por outro verbo que o qualifica, dando-lhe transitoriedade. Explico mais claro: antes se dizia: fulano “mora” ali. Hoje se diz fulano “está morando” ali. E ele só “está morando” porque não mora. Ele “está morando” ali supõe que dentro em breve ele estará morando em outro lugar. “Estar morando” é ser passante. Morar é ser “ficante”…
Igualmente, as pessoas não “ficam”, já repararam? Elas “estão vindo” ou “estão indo” e é nesse intervalo que a gente se vê e pode bater apertado papinho carregado do tal atropelo de vivências por mim citado lá no início da crônica.
Não, não há qualquer saudosismo nessas observações. Não estou dizendo que morar é melhor que “estar morando”. Que “ser” é melhor que “viver sendo”. Quem sou eu pra saber o que é melhor?
Quero apenas dizer-lhes que o atropelo de vivência gerado pela velocidade da mudança está provocando um fenômeno muito novo e inusitado: a saudade do recente.
A saudade do recente, pra começo de conversa, tirou dessa linda, poética e badalada palavra (que só a língua portuguesa tem) o caráter de coisa exclusiva de pessoas já vividas. Quando uma rádio, há tempos, a Mundial, se não me engano, criou uma seção chamada “Jovem também tem saudade”, ela estava captando um sentimento e uma verdade.
A saudade do recente é mais cruel porque indica que tudo passou mais depressa. Sim isto! Tudo, hoje, passa mais rápido. No ritmo que o mundo vai, teremos em breves anos doces meninas planetárias de dez anos de idade chorando num canto a saudade de um tempo (seis meses atrás) que não volta nunca mais…
A impermanência sendo a regra, como falar das casas, mundos e jardins que não chegaram a existir? Como lembrar aquela fase da vida? Que fase? Como é possível chamar de “fase” o que nem chegou a ser pois, quando “pintou”, já era?!?!
É isso aí! Talvez esta onda atual de nostalgia seja a derradeira defesa do bicho homem enquanto ainda resta algum tempo e algo suficientemente forte e duradouro dentro da gente pra recordar.
Saudade do recente: mal eu comecei a viver o acontecimento marcante e sensível e dele já começo a morrer de saudade.
No futuro, teremos saudade do que ainda vai acontecer…
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