segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Irmãs deixam o sertão para reforçar a revolução das mulheres na economia

Irmãs deixam o sertão para reforçar a revolução das mulheres na economia


Ana D'Angelo


Maria Francisca e Francisca Portela são duas irmãs de uma família cearense de 13 filhos. A primeira se casou aos 18 anos, fez as malas e se mudou com o marido de Coreaú, no sertão nordestino, para o Planalto Central, em 1987. A segunda, quatro anos mais nova, veio logo depois, em 1990, seguindo as trilhas abertas pela irmã. Ambas começaram a trabalhar como empregadas domésticas, em um tempo em que o país sofria com uma inflação galopante, de mais de 50% ao mês, e o desemprego era alto. De bagagem, além da determinação, apenas o antigo primário de instrução. 

Duas décadas depois, Francisca, a mais nova, é pequena empresária do setor de transporte escolar, com três vans. Maria Francisca, que ainda trabalha como doméstica, está concluindo o curso técnico de enfermagem e pretende mudar de ramo. Aos 38 e 42 anos, respectivamente, as duas irmãs já têm imóvel próprio, de três quartos, nas quadras 400 da Asa Norte e da Asa Sul — fruto de muita consciência e disciplina para poupar ao longo da vida profissional. Compradas em 2007, as moradias dobraram de preço desde então. 

No caminho do sucesso das duas irmãs, muitas barreiras. De sol a sol, uma dupla e extenuante jornada de trabalho. Era uma guerra garantir o pão de cada dia dos filhos. Quando chegou a Brasília há 25 anos, Maria Francisca, a mais velha, foi morar na casa do irmão do marido, Raimundo Nonato, no Gama. Um mês depois, mudou-se para um barraco de madeira em uma invasão da região de Águas Claras. 


Dona de uma frota de vans, a mais nova das Franciscas faz das tripas coração para dar conta da missão de empresária e de pai e mãe de Francisco e Maria (Ed Alves/Esp. CB/D.A Press)
Dona de uma frota de vans, a mais nova das Franciscas faz das tripas coração para dar conta da missão de empresária e de pai e mãe de Francisco e Maria

A sorte começou a virar quando o marido, que trabalhava como pedreiro, arrumou uma vaga de zelador na Asa Sul e ela conseguiu emprego em uma das residências do mesmo prédio, onde está até hoje. Foi graças à patroa, a professora aposentada Rutmar Pontes, 55 anos, ao flexibilizar seus horários de trabalho, que ela pôde concluir os estudos e cumprir sua maior missão: acelerar o desenvolvimento da filha, Raquel, hoje com 20 anos, para escapar de uma vida de muitas limitações.

LutaQuando Raquel nasceu, Maria Francisca percebeu que havia algo errado, mas não quis acreditar. A menina não reagia quando era chamada. Foi na creche, com 1 ano e quatro meses de idade, que as professoras da filha perceberam o problema. A criança foi diagnosticada com deficiência auditiva profunda — era incapaz de ouvir qualquer som nos dois ouvidos. Depois de muito insistir, a doméstica conseguiu uma vaga no Centro Educacional de Audição e Linguagem Ludovico Pavoni (Ceal). 

A vida, já agitada, passou a ser uma correria sem fim. Maria Francisca saía do trabalho na hora do almoço, levava a filha ao Ceal e a buscava no fim do dia. À noite, ela treinava com a menina usando as apostilas da instituição. “Se outras crianças evoluíram, a minha também vai”, repetia ao ver os sinais de melhora de vários meninos com surdez. O fim de semana era dedicado exclusivamente às tarefas indicadas para estimular Raquel. A menina passou a ficar o dia inteiro no Ceal. Ciente da situação, a patroa permitiu que Maria Francisca passasse a tarde com a filha na instituição. Lá, aproveitou o tempo para retomar os estudos. Fez o supletivo do primeiro grau. Depois, o do segundo grau. 

Nessa época, ela levava a filha para casa no fim do dia, treinava os exercícios para fala e depois corria para o trabalho. “Quantas vezes cheguei à noite e lá estava Maria Francisca na cozinha lavando louça”, lembra a patroa Rutmar, que foi quem a incentivou a fazer o curso técnico de enfermagem. “Ela tem muito talento para cuidar das pessoas.” 

Mas, para dar conta de tudo, Maria Francisca fica até tarde da noite e os fins de semana estudando, sem contar as horas que arruma para dar assistência a necessitados na sua igreja. “É difícil, são muitas noites sem dormir”, comenta. Duplamente vitoriosa, ela só sorri da vida e não tem dúvidas sobre a profissão que começará a exercer na casa dos 40 anos : “Sei que vou me dar bem”.

AdoçãoA vida da irmã, também Francisca, não foi mais fácil. Chegou à capital federal com 16 anos e ficou morando no emprego. Logo depois, conseguiu uma vaga de auxiliar em uma escola, por indicação da síndica do prédio onde trabalhava. Enquanto isso, já fazia sua poupança e estudava à noite. Entrou na faculdade de administração. Rapidamente, comprou seu primeiro carro, em uma época em que esse bem era um luxo, pois o crédito era caro. Ao ver diariamente as vans levando e buscando as crianças, pensou: “Vou ter um negócio desses”. Trocou seu veículo por uma Kombi e passou a “carregar menino”. Desde então, o negócio só prosperou. 

Adotou duas crianças de parentes que não as quiseram. A primeira chegou há 13 anos. A outra, Francisco, de 6 anos, lhe foi entregue aos seis meses à beira da morte, com má formação do canal urinário e epilepsia. Sua barriguinha é inchada e muito vulnerável, pois ele não tem músculos suficientes para proteger os órgãos. Francisco precisará passar por nova cirurgia. E tomará a vida toda pelo menos duas doses de remédios por dia para controlar as convulsões.

Há dois anos, Francisca teve uma menina, Maria, com um ex-namorado do Ceará, o que só aumentou as responsabilidades. Mas está longe de reclamar da rotina: acorda por volta das 5 da manhã, leva crianças para escola, busca, dá almoço aos filhos, faz compras e dorme depois das 23h. Feliz, fala com satisfação: “Gosto da minha vida. Sou uma vencedora”.

Craque em leitura labial
Ainda na adolescência, a filha de Maria Francisca, Raquel, já dava aulas de Libras (língua brasileira de sinais) para outros portadores de deficiência auditiva. Craque em leitura labial, antes de terminar o segundo grau, tinha passado no vestibular de educação física no UniCeub, onde está cursando, pela manhã, o terceiro período. À tarde, a jovem trabalha no Tribunal Regional Federal da 2ª Região.







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