Por Alexandre Figueiredo, em resposta a este texto de Ferreira Gullar
Muitas vezes, avós e netos se aliam mais do que pais e filhos. Vendo o recente preconceito sócio-cultural de Ferreira Gullar – antigo cepecista que, juntamente com antigos esquerdistas contemporâneos de 50 anos atrás, como Arnaldo Jabor e José Serra, migraram e se acomodaram à direita – , através de um artigo chamado “Preconceito Cultural”, dá para perceber o quanto ele e o neto Mateus Aragão se unem na “colocação” da cultura negra brasileira.
Em seu artigo, Ferreira Gullar “estranha” a existência do termo “literatura negra”, e além disso disse que os escravos “não tinham literatura” pois “nem sequer aprendiam a ler”. Como se os escravos tivessem sido um bando de selvagens, o que não é verdade, porque eles vieram de tribos com estrutura sócio-política bastante organizada, como é o caso dos nossos indígenas.
O “primitivismo” do estereótipo do povo escravo ainda faz o poeta concretista dizer que Machado de Assis e Cruz e Souza não faziam literatura negra porque “eram herdeiros da literatura européia”. Luiz Silva Cuti, em seu artigo na revista Áfricas, questiona essa hipótese de que influências europeias não possibilitam o fortalecimento de culturas negras, citando os casos de Lépold Senghor e Aimé Césaire, ativistas negros pioneiros, que eram claramente influenciados pela literatura francesa.
Luiz Cuti acrescenta ainda, citando o “lugar do negro” na nossa cultura: “A maneira como o tal poeta cita o samba, a dança, o carnaval, o futebol é aquela que simplesmente aponta o ‘lugar do negro’ que o branco racista determinou, um lugar que serviu de “contribuição” para que os brancos ganhassem dinheiro, não só produzindo sua arte a partir do aprendizado com os negros, mas também explorando compositores diretamente e calando-os na sua autoafirmação étnica. Basta inventariar quantos grandes compositores negros morreram na miséria. A essa realidade o poeta chama de: ‘nossa civilização mestiça’ “.
Cuti ainda faz uma crítica contundente à esquerda caolha e daltônica, da qual se insere uma intelectualidade etnocêntrica capaz de aplaudir um DJ de “funk carioca”, acusado de envolvimento com o tráfico, dizer que o ritmo “pode substituir” o ensino de redação nas escolas. Eis outro comentário contundente (separei os parágrafos para facilitar a leitura):
“A esquerda caolha e daltônica brasileira sempre se negou a encarar o racismo existente em nosso país. Por isso andou e anda de braços e abraços com a direita mais reacionária quando se trata de enfrentar o assunto. Para ela, a mesma ilusão dos eugenistas, tipo Monteiro Lobato, se apresenta como verdade: o negro vai (e deve) desaparecer no processo de miscigenação.
Para alguns cristinhos ressuscitados dos porões da ditadura militar e seus seguidores sobreviveria e sobreviverá apenas o operariado branco. Concebem isso completamente esquecidos de que a cor da pele e traços fenotípicos estão inseridos do mundo simbólico, o mundo da cultura. No seu inconsciente, o embranquecimento era líquido e certo, solução de um “problema”. Hoje, é provável que os menos estúpidos já tenham se deparado com as estatísticas e ficado perplexos.
Gullar, pelos seus argumentos, se coloca como um representante da encarquilhada maneira de encarar o Brasil sem a participação crítica do negro. E, como é de praxe, entre os encastelados no cânone literário brasileiro, incluindo os críticos, não ler e não gostar é a regra.
Em se tratando de produção do povo negro, empinam e entortam ainda mais o nariz. Devem se sentir humilhados só de pensar em ler o que um negro brasileiro escreveu e, no fundo, um terrível medo de verem denunciado o seu analfabetismo relativo a um grave problema nacional: o racismo, ou serem levados a cuspir no túmulo de seus avós”.
Pois é essa intelectualidade que se esquece da admirável inteligência de Carolina Maria de Jesus, que, nos tempos em que Gullar, consagrado poeta concretista, havia participado da fundação dos CPC’s da UNE, havia lançado dois livros de impacto: Quarto de Despejo e Casa de Alvenaria.
Carolina foi uma notável escritora negra, que falava da realidade da favela, não a favela idealizada pela intelectualidade pequeno-burguesa que a vê como “arquitetura pós-moderna” e fonte rentável de turismo politicamente correto, mas como um ambiente de pobreza, miséria e insegurança, palco de muitos infortúnios nem sempre compreendidos pela intelectualidade embasbacada e seus “semi-deuses” que louvam o brega-popularesco.
Artistas negros, como a humilde Carolina, poderiam ter havido entre os escravos. Talvez houvessem entre estes notáveis escritores, admiráveis cantores e músicos, brilhantes poetas. Mas a situação é que não permitiu que surgissem artistas assim.
Se os escravos não sabiam ler nem escrever, não é porque quiseram, mas porque estavam impedidos de desenvolver esses dons. Se a sociedade moralista da época impedia as jovens senhorinhas brancas de lerem, fazia o mesmo com os escravos, temendo das primeiras a comunicação de aventuras amorosas e os segundos de qualquer inspiração literária para qualquer rebelião.
O que a intelectualidade brasileira de hoje, não tão elitista quanto os “iluministas de engenho” brancos que só achavam a revolta popular da Revolução Francesa bonita vista de longe, mas dotada de seus preconceitos “sem preconceitos”, pensa da cultura negra é que ela hoje deva ser domesticada, deturpada pelo “deus mercado” que essa intelectualidade louva mas jura que ele não existe.
O “funk carioca” – defendido pelo neto de Gullar, Mateus Aragão, idealizador do “Eu Amo Baile Funk”, organização por trás do Rio Parada Funk, evento feito para tentar desviar os cariocas da atenção às “primaveras” novaiorquinas do Ocupar Wall Street – é um meio usado pela intelectualidade caolha para inserir o povo negro “no seu lugar”.
Essa intelectualidade, que apoia o “fim da história” fukuyamiano na Música Popular Brasileira, diz aplaudir a música negra feita até meados dos anos 80. Depois disso, o que valem são os neo-bregas que apenas brincam de “samba” em arranjos pasteurizados (o tal “pagode romântico”) ou num engodo chamado “pagodão baiano”, para não dizer outras condições permitidas pelo etnocentrismo das elites brancas.
Aliás, o “pagodão baiano”, de grupos como É O Tchan, Harmonia do Samba, Terra Samba, Psirico e Parangolé transforma a negritude numa caricatura. Através desse cenário, negros são transformados em “bobos alegres” que rebolam histericamente ao som de suas músicas fracas – pastiche de samba de gafieira que eles, por desconhecimento, chamam de “samba de roda” – enquanto perdem boa parte do tempo precioso de suas apresentações falando banalidades com a plateia: “cês tão de camisa?”, “as gatinhas vão de banda, os gatinhos vão atrás”.
Quando tentam fazer “canções de protesto”, como “Favela” do Parangolé e “Firme e Forte”, do Psirico, escrevem letras dignas do ufanismo pró-ditadura de 1968-1972, que a intelectualidade etnocêntrica, caolha e daltônica, “sem preconceitos” mas muitíssimo preconceituosa, exalta no seu revisionismo cripto-tucano da música brega, a partir do historiador cultural da Era FHC, Paulo César Araújo.
O “funk carioca” também aposta nisso, em outro contexto. Glamouriza a miséria, faz apologia da pobreza, aprisiona o povo pobre cuja “emancipação” se limita à mera inclusão no consumismo, tida erroneamente como “inclusão social”. Explora a figura da mulher negra de forma que as jovens negras só serão “bem sucedidas” se venderem seus glúteos para a mídia, em vez de lutarem para serem alguém na vida no mercado de trabalho e na educação. A “cidadania” no “funk” torna-se palavra morta, não se melhora a educação, não se traz segurança, o “funk” apenas faz sua choradeira para faturar em cima.
O “movimento” Eu Amo Baile Funk aposta até mesmo no consumo do “funk carioca” – já convertido num “exotismo” para turista ver – pelas classes abastadas, num feedback etnocêntrico em que a população pobre e majoritariamente negra é transformada em estereótipo, em caricatura, pela velha grande mídia, e a burguesia que a consome de forma demagógica e hipócrita.
De um lado, o povo pobre é transformado em caricatura, “embalado” para consumo das elites esnobes e presunçosas. De outro, são essas elites escondendo seus preconceitos sociais vislumbrando uma imagem de povo pobre que não tem a ver com a realidade.
Enquanto isso, essa intelectualidade “sem preconceitos” mas muito preconceituosa tem medo que apareçam novos Jackson do Pandeiro, Jovelina Pérola Negra e Itamar Assumpção. Ou uma nova Carolina Maria de Jesus, um novo Eliézer Gomes, ou que apareça algum Patrice Lumumba (o célebre líder político do Congo libertado da colonização belga) em algum ponto do subúrbio carioca ou soteropolitano, ou talvez em Niterói, Recife ou São Gonçalo.
Para essa intelectualidade, a cultura do povo pobre foi boa no passado. Agora o que vale é o comercialismo, a diluição, a estereotipação, a promoção de pretensos “coitadinhos” a exagerar no seu dramalhão pessoal enquanto são protegidos pelos barões da grande mídia, dos quais são dedicados fantoches.
A “dedicação” de Mateus Aragão ao mercado funqueiro não é menos etnocêntrica que o comentário de seu avô. Enquanto a literatura etnocêntrica se comporta como se quisesse proteger-se da influência negra, o “funk carioca” representa um “cativeiro cultural” para os negros, escravizados por um mercado “musical” de valores retrógrados, como o machismo e a própria grosseria de seus MC’s.
Para terminar este ensaio, fica aqui o nosso pesar pelo falecimento da grande figura que foi a cantora de Cabo Verde, Cesária Évora, de belíssima voz e admirável estilo, um grande nome da música africana que, no Brasil, foi bem acolhido pela MPB autêntica que coloca valores culturais acima de qualquer facilidade de lotar plateias. E Cesária, que cantava em português, se entrosava bem com esse intercâmbio lusófono com a música brasileira.
Fica aqui a nossa gratidão a Cesária, e que seu legado continuará vivo na memória do povo e na história da cultura mundial.
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