Felipe Prestes no Sul21
Uma medida provisória que ganhou força de lei na semana passada gerou forte descontentamento entre militantes feministas. Por meio da MP 557, o Ministério da Saúde instituiu o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera. O objetivo do governo é ter um cadastro universal de gestantes e puérperas para prevenir a mortalidade materna, zelando para que as gestantes mantenham-se continuamente sendo acompanhadas durante e após o parto. A ideia de um controle sobre isto, porém, com um cadastro das gestantes foi vista como autoritária e como um possível instrumento para aumentar a repressão ao aborto.
Mas as críticas não se resumem a este aspecto. As feministas apontam que vários trechos da MP levam a crer que o governo federal está atendendo demandas de religiosos católicos e evangélicos. Um deles é a própria ideia de um cadastro. “A coisa que eles mais querem é um cadastro de gestantes. O Brasil já tem meios para apoiar as gestantes, não precisa deste cadastro. Se você perder o filho, se não quiser ter, isto vai estar no cadastro”, afirma Fátima Oliveira, médica, escritora e integrante dos conselhos da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe.
A mestra em Direito, pesquisadora dos direitos das mulheres, Cynthia Semíramis, afirma que vários projetos já tramitaram no Congresso, sempre vindos da bancada religiosa, visando estabelecer algum tipo de cadastro de gestantes. “O governo está interferindo demais na vida das mulheres”, afirma.
Quanto à privacidade das mulheres, incomodou ainda mais o fato de o governo oferecer um auxílio de R$ 50 para viabilizar o transporte da gestante para realizar exames. Isto porque o nome das beneficiárias será publicado no site Contas Abertas, para fins de transparência dos gastos públicos. Cynthia Semíramis acredita que esta lista pública pode ser utilizada por líderes religiosos para policiar as gravidezes alheias. “A mulher vai ser controlada por gente que não tem nada a ver com a vida dela. Vai ter religioso batendo à sua porta para ver como está a gravidez”, diz.
Semíramis recorda um caso recente que considera ilustrativo sobre o controle que os religiosos podem pretender exercer. Foi quando uma clínica de aborto foi estourada pela polícia no Mato Grosso do Sul. O processo transcorreu sem segredo de Justiça. “Havia uma fila de religiosos na Justiça querendo consultar o processo para ver quem eram as mulheres que foram flagradas fazendo aborto”, conta.
A própria concessão do benefício também é vista como uma demanda da bancada religiosa. Cynthia Semíramis aponta que o benefício é semelhante à “Bolsa-Estupro”, um projeto de lei do deputado evangélico Henrique Afonso (PV-AC), que visa dar uma ajuda de custo para que a gestante que carrega no ventre o fruto de um estupro não aborte, destituindo uma das únicas possibilidades de interrupção de gravidez permitida pela legislação brasileira. “O governo segue a mesma técnica dos projetos que são constantemente enviados pela bancada religiosa”, afirma Cynthia.
Ministério da Saúde diz que não quer vigiar
A assessoria de comunicação do Ministério de Saúde afirma que o cadastro visa apenas zelar pelas gestações de risco e que o governo nem teria capilaridade para exercer qualquer controle sobre os atos das mulheres. Em suma, que o objetivo não é de vigiar as gestantes, mas de estimular os exames, zelar por sua saúde. O Ministério afirma que o país conseguiu reduzir em 14% a mortalidade de gestantes ou puérperas de 2009 para 2010, mas que terá dificuldades para atingir a “meta do milênio” para 2015. A ideia de um cadastro universal partiu do fato de que muitas gestantes não realizam exames regularmente, nem as atendidas pelo SUS, nem pela rede privada ou filantrópica.
Quanto ao auxílio para transporte, ele parte, segundo o Ministério, da percepção de que a falta de meios para ir até o local do exame é um dos principais motivos pelos quais as mulheres não realizam o pré-natal de maneira adequada. A publicação do nome das beneficiárias é uma consequência inevitável, porque o governo não pode dar recursos para quem quer que seja de maneira sigilosa. A assessoria de comunicação ressalta que as listas de beneficiários de outros auxílios do governo, como o Bolsa-Família, também são públicas.
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, rebateu algumas das críticas via Twitter. Padilha afirmou que o benefício só será concedido a mulheres que já tiverem cumprido todas as etapas do pré-natal e que, portanto, chegaram a uma fase de gestação em que já é muito mais difícil realizar um aborto. Quanto ao cadastro universal, Padilha disse que, além de não ser um cadastro público, só reforça dados já existentes, por exemplo, no SIS Pré-Natal. Assim, se houvesse o interesse de alguém em conseguir controlar as gestantes, isto já poderia ser feito.
O ministro se disse “chocado” pela quantidade de pessoas procurando “pelo em ovo” na Medida Provisória, e reforçou que o objetivo é acompanhar gestações de risco. “Toda gestante de risco deve ser acompanhada pelas mais altas autoridades de saúde para prepararmos parto seguro e humanizado”, disse.
Expressão direito ao nascituro é concessão ao Vaticano, aponta Oliveira
Militante da saúde da mulher há três décadas, Fátima Oliveira ficou bastante decepcionada com a MP. Leu e releu várias vezes a lei, ainda sem acreditar no que lia, e evitou dar entrevista sobre o tema na última quinta-feira (29), dia em que tomou conhecimento do texto, para não falar de cabeça quente. No dia seguinte, quando conversou com o Sul21, Fátima revelou sua decepção. “A gente vem tendo uma história de perdas políticas neste governo no campo dos direitos reprodutivos. O Governo Dilma faz opções que batem frontalmente com o que vem sendo construído nos últimos 30 anos”, disse.
Na Medida Provisória, o que mais incomodou foi o artigo 19-J, que diz que “os serviços de saúde públicos e privados ficam obrigados a garantir às gestantes e aos nascituros o direito ao pré-natal, parto, nascimento e puerpério seguros e humanizados”. Fátima considera que falar em “direito do nascituro (feto)” foi uma clara concessão do governo ao Vaticano.
“O Vaticano tenta isto faz tempo. O nascituro não tem personalidade civil no Brasil. A grávida já é ela e o nascituro. É um problema político grave. O governo está dando personalidade a quem não tem. Isto é inconstitucional”, afirmou. “O que nos assusta é que somos um país democrático e laico. Estas questões não deveriam estar submetidas ao fervor religioso de ninguém, mas à cidadania das mulheres”, completou.
Nas várias vezes em que leu a MP, a médica também notou que não consta em nenhum momento a palavra “aborto”, que é uma das causas importantes de óbito entre gestantes e puérperas. “É hipocrisia querer combater a morte materna e não falar em aborto, que é uma causa importante de óbito”, disse.
Tweet
0 comentários:
Postar um comentário