quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Bobos da corte às avessas: CQC deturpa a função social do humor e do jornalismo em prol do espetáculo

Bobos da corte às avessas

CQC deturpa a função social do humor e do jornalismo em prol do espetáculo


por José Coutinho Junior e Mariana Baère


A fusão entre jornalismo e humor não é nova. Os jornais satíricos surgiram na Inglaterra durante o século XVII para denunciar os abusos da corte. No Brasil, a caricatura foi uma força fundamental na luta pela abolição da escravidão e, na época da ditadura militar, jornais como O Pasquim surgiram para denunciar a censura do período por meio do humor. Atualmente esta relação, por vezes dialética, se faz presente sob diversas faces. 
Seu maior (e controverso) expoente nacional é o programa Custe o Que Custar, exibido na Rede Bandeirantes.

Apresentando um caráter oposto aos exemplos citados, o programa utiliza o jornalismo e o humor de forma acrítica, muitas vezes até sacrificando o ideal humorístico, aquele cuja maior missão é re-significar o sistema de poder através da irreverência e do deboche, e coloca tanto o jornalismo quanto o humor à serviço do espetáculo.

Para compreender o CQC, deve-se primeiro entender o tipo de humor feito no programa: o politicamente incorreto.  Ao estudar o cômico no Renascimento e nos séculos subsequentes, o linguista russo Mikhail Bakhtin aponta que o humor era responsável por criticar, de forma irreverente, a estrutura de poder da sociedade. Com o passar do tempo, este potencial do cômico se tornou cada vez menor. Isso se dá porque no Renascimento o humor era uma forma de concepção de mundo tão ou mais válida quanto o sério, era “uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade”; do século XVII em diante, o cômico deixa de fazer parte da concepção de mundo, apenas o sério é levado em conta." [1]

Essa transformação, segundo Bakhtin, ocorre pois o cômico, que no Renascimento se localizava em uma esfera fora da cultura oficial e pertencia ao povo, nos séculos seguintes é incorporada por esta cultura oficial, representada principalmente pelo teatro burguêrs. Quando o humor se torna uma força ao lado do poder, a crítica social dá lugar à ridicularização banal dos indivíduos. O humor politicamente incorreto é a evolução deste processo apontado por Bakhtin, pois esvazia completamente a crítica do humor político. Partindo do pressuposto de que o humor só serve para fazer rir e que uma piada não pode ser uma forma de transmissão de ideias e preconceitos, o humorista sente que tem a liberdade para criticar a tudo e todos o que quiser, o que faz desse humor uma ótima forma de espetáculo.  

De certa forma, "espetáculo" seria o termo certo para se descrever o CQC. Apesar de ser apresentado como uma nova forma de se fazer jornalismo, o programa não faz nada de novo. Não dá margem ao imprevisto ou à surpresa, pois tudo é controlado: as piadas e comentários da bancada são ensaiadas pelos apresentadores antes do programa ir ao ar; a linguagem das reportagens prioriza o lado emocional à contextualização factual, sustentando o argumento da reportagem por meio do confronto, ataques pessoais e pela humilhação dos entrevistados tanto pelos repóreteres  quanto pela estética do programa, que utiliza efeitos especiais para ridicularizar o entrevistado e transformar o repórter em uma figura que está sempre certa.  

Inserido na lógica de acumulação de capital e comprometido fortemente com patrocinadores e anunciantes, a crítica do programa ocorre apenas quando ela se dirige às minorias, como mulheres e homossexuais, ou mesmo à vida pessoal de indivíduos que representam o poder. No entanto, a crítica à indivíduos isolados mascara os problemas inerentes ao sistema capitalista e à nossa sociedade: é simples para o CQC mostrar que o deputado Jair Bolsonaro é um bastião de ideais reacionários e que ele deveria ser expurgado de seu cargo de poder, mas o programa não questiona que, se o deputado foi eleito e reeleito, há muitas pessoas que compactuam com estes ideais, inclusivo os prórprios repórteres e apresentadores do CQC, que transmitem por meio de suas piadas os mesmos valores que o deputado em suas declarações.

Sob os holofotes ligados em rede nacional, o CQC insiste na desnecessária utilização do humor como ferramenta própria à difamação e humilhação dos sujeitos envolvidos. A supérflua preocupação com os limites socialmente pactuados reforça a total falência desse falso discurso libertário. Ao naturalizar a ideia de que "é apenas uma piada", o humorista politicamente incorreto encontra uma barreira que o impede de falar: o poder. 

Quando ele ofende as personalidades das classes mais altas e seus valores "sagrados", estas classes deixam de rir e ameaçam tirar o patrocínio do programa. Basta tomar como exemplo o humorista e ex-apresentador do CQC Rafinha Bastos: o humorista sempre fez piadas machistas e homofóbicas e, apesar de ser criticado pelas ditas minorias, nunca sofreu qualquer penalidade por parte do programa. Quando a piada atingiu uma pessoa da alta sociedade, ele foi imediatamente afastado. A piada perdeu a graça.

Seja pelo humor descontextualizado, insípido ou, julga-se, sem graça, o programa evidencia padrões de manipulação tendenciosos que se fazem presentes nos anúncios de patrocinadores gravados pelos prórpios repórteres, exibidos antes de cada reportagem, na forma padronizada como as reportagens são realizadas, na estética que humilha e que não dá direito de intervenção por parte do entrevistado e na preferência a se espetacularizar a notícia ao invés de fornecer ao telespectador a informação de qualidade.

Paradoxalmente ao seu próprio lema, "Eles estão à solta, mas nós estamos correndo atrás", que demonstra uma atitude de confronto às autoridades e alinhamento com as questões sociais, o CQC, ao utilizar-se de um humor que humilha a tudo e a todos que estão fora dos círculos de poder, assume o papel da autoridade que o programa se propunha a criticar. Situação que o enquadra à hipocrisia elevada ao cúmulo do ridículo. Ao tornar as barreiras da ficção e da realidade imperceptíveis pelo uso de ferramentas midiáticas o CQC somente contribui para o fim daquela primeira função social do jornalista, a de sempre revelar ao seu público a verdade.

José Coutinho Junior e Mariana Baère

Jornalistas

[1]Bakhtin, Mikail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento O Contexto Popular de François Rabelais. Brasília: Editora UnB, 2008
Ilustração: Daniel Kondo


No Le Monde Diplomatique Brasil 

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