Sírio Possenti no TerraMagazine
Nelson Rodrigues cunhou a expressão "idiotas da objetividade", que reaparecia em muitas ocasiões, e a propósito de temas diversos.
Um era o futebol. O replay estava apenas nascendo. Podia-se ver, então, "objetivamente", como tinha sido certa jogada. A questão é levada ao paroxismo, hoje, quando metade dos programas esportivos gasta metade de seu tempo discutindo, com base nas imagens repetidas ad nauseam, se houve ou não impedimento em determinada jogada, se foi pênalti, se a bola entrou, se a falta foi intencional, se o juiz estava bem colocado etc. Ouvem-se coisas como "na minha opinião, ele está impedido: olha lá o pé dele; não parece, por causa do ombro, mas o pé mostra que está".
Como Nelson Rodrigues faz falta! Ele achava idiota esse tipo de objetividade. E nem enxergava bem, o que lhe permitiu escrever maravilhas sobre o que ocorria em campo. Certamente, não seria um bom editor das modernas páginas, cheias de números, mas quem falou melhor de futebol do que ele, que fez dos jogos verdadeiras epopéias? Só ele para escrever coisas como "Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural".
Nem consigo imaginar o que ele diria do dirigente da Globo (são as notícias) que impôs à emissora a expressão falsificada "perigo de morte", em vez de "perigo de vida". Teria argumentado que é errada a expressão "(correr) perigo / risco de vida", que ele achava que quer dizer 'perigo / risco de viver'. De fato, ele teria dito (eis a idiotia da objetividade), corre-se "perigo / risco de morte", isto é, 'perigo / risco de morrer'.
Imagine, se for capaz, este idiota da objetividade corrigindo provérbios, quadrinhas, piadas, e metáforas como "matar o tempo", sem contar as hipérboles e as lítotes, e mais todos os idiomatismos. E em todas as línguas! Por exemplo, os ingleses dizem "it rains cats and dogs" (literalmente, "chove gatos e cachorros"!) para o nosso "chove a cântaros". Que também não é uma expressão objetiva, diria aquele idiota! Afinal, onde estão os cântaros?
O perfeito idiota teria que sair de lápis em punho, corrigindo tudo, fazendo as palavras, supostamente, corresponderem às coisas.
Mas esta é apenas uma das questões, talvez a questão de fundo, que diz respeito à concepção que se possa ter das línguas (retoma, por exemplo, o velho tema das línguas artificiais). Outra questão, no entanto, é tão relevante quanto essa: a análise deveria levar em conta mais do que uma expressão ou uma frase solta.
Por exemplo, quando se diz que "sentar na mesa" quer dizer 'sentar em cima da mesa' (outra idiotice!), pode-se ver logo o tamanho da besteira pela simples comparação com "moro na cidade" ou "estou em casa". Se fosse como "eles" dizem, "na cidade" deveria significar 'em cima da cidade' e "em casa", 'em cima da casa'. Mas que idiotice! Tem gente que acha que dizer "namorar com..." implica a presença de um terceiro!!
Para ver melhor o tamanho da bobagem que é impor "perigo / risco de morte" para supostamente dizer as coisas como elas são, basta considerar frases como "o bombeiro, com risco da própria vida", ou, simplesmente "com risco da vida". Incluir um artigo na construção evita qualquer interpretação, mesmo que forçada, de "risco de vida" como 'risco de viver'. Em "risco da própria vida", o sentido de 'risco para a vida' é ainda mais óbvio, é o único possível. Mas insisto em dizer que este argumento nem deveria ser necessário: basta considerar como são interpretados de fato os idiomatismos (bater um papo, quebrar a cara, direito divino).
Uma espiada no Google mostra dados curiosos (bons para aulas interpretativas, para desenvolver intuições). Por exemplo, "o maior risco da vida é não fazer nada" e "outros fatores de risco da vida adulta são...". Nos dois casos, "vida" não é alvo de "risco" (a frase não quer dizer 'risco para a vida'), mas fonte, agente, responsável (a vida produz riscos).
As paráfrases mostram claramente este sentido: "o maior risco que a vida oferece é não fazer nada / há (existe) o risco de viver sem fazer nada" e "a vida adulta produz vários fatores de risco" etc.
"Risco da vida", em suma, pode significar 'risco para a vida', mas também 'risco que a vida é / oferece / propõe / produz'. É o que significa, certamente, da famosa declaração de Riobaldo Tatarana: "viver é muito perigoso".
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PS - Explorando uma suposta relação direta entre as palavras e as coisas, considerando em especial nomes próprios (um cara de sobrenome Bustos será cirurgião plástico; um de sobrenome Direito será juiz, como de fato houve um, do STF, recentemente falecido), Zé Simão produz sacadas interessantes, de óbvio efeito humorístico. Dou-lhe uma de presente, se é que já não se apoderou dela: dupla de tenistas italianas, Errani e Vinci perderam para a dupla russa (mas foi Azarenko venceu a final de simples, e não foi pura sorte!). Era mais ou menos de se esperar, diria ele, apesar da presença de Vinci; é que a outra, Errani, não podia dar certo...
Por falar nisso, o que será que quer dizer Djonkovic?
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