domingo, 4 de março de 2012

A revolução das mulheres

A revolução das mulheres

Por Apóllo Nátali(*)


A sombra da eterna dominação masculina não obscurece os feitos femininos.
Miriam Tendler, pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz, acaba de desenvolver vacina contra a esquistossomose, conhecida como barriga d’água, doença que afeta 74 países, infecta 200 milhões de pessoas em todo o mundo, coloca outros 200 milhões sob risco de contaminação e provoca 200 mil mortes por ano, além de contaminar mais de 300 milhões de cabeças de gado.
Recente contribuição inestimável em outra área, a oftalmologia, é de May Griffith, a canadense do Laboratório de Pesquisas Hospitalares da Universidade de Otawa, que obteve em laboratório a córnea artificial a partir de material do próprio paciente, dando adeus à comoção da fila de transplantes e aos problemas de rejeição.
Tantos outros feitos femininos olimpianos na história da humanidade merece um título: a revolução das mulheres.
No Brasil, o índice de lares chefiados por mulheres atingiu 29,2% em 2006, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dez anos antes a taxa era de 21,6%. A autodeclaração é o principal critério para apontar o chefe de uma família. O percentual de mulheres casadas que comandam seus respectivos domicílios aumentou de 9,1% para 20,7%. Para especialistas, além do maior espaço da mulher no mercado de trabalho, o aumento reflete um processo de evolução cultural.
Bem que a escritora francesa Simone de Beauvoir avisou: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Sua análise da condição da mulher em “O segundo sexo” alerta que “elas” estão sempre compelidas a provar que não são “inferiores” ao homem, como “eles” juram que são.
O poder feminino de raciocínio e realizações tem sido milenarmente desacreditado pelo mundo masculino. Hoje, se a evolução cultural da mulher não mais depende de concessão do homem, “elas” pagaram o preço para isso, tornaram-se mulheres. A história do mundo está aí para contar.
Cada conquista feminina, cada passo adiante ensaiado a duras penas, tiveram validade apenas com o “conceda-se” da esfera masculina. Elas só “raciocinam e realizam” com a permissão do homem. Injusto, discriminatório, e mais alguma coisa, claro.
À parte as grandes mulheres que transitam na História por todo o Planeta, algumas datas marcam, a partir do começo do século 20, episódios grandiloquentes do poder de raciocínio e realizações de mulheres brasileiras.
Foi uma brasileira a primeira no mundo a pilotar um avião em vôo solitário a grande distância, sobrevoando as três Américas. Nasceu entre nós aquela que fundou o primeiro partido político no País. É nossa a pioneira da arte da escultura. Uma menina de 16 anos, jornalista, é a que primeiro defendeu o voto da mulher aqui. Uma professora é a que lidera a primeira passeata em nossas plagas exigindo voto feminino. Uma jovem bióloga é a primeira a denunciar o tratamento discriminatório dado ao chamado sexo frágil. Vamos a elas.
No esporte
“Desenvolver nos homens a harmonia e a igualdade, através do aprimoramento físico”. Assim rezava a cartilha de Pierre de Fredi, o Barão de Coubertin, criador dos Jogos Olímpicos Modernos, no fim do século dezenove. Veja bem: desenvolver nos homens, dizia ele.
A considerada grande obra esportiva de Coubertin já nasceu discriminando as mulheres, apesar de sua lenga-lenga jurar que se proibia nos Jogos qualquer interferência ou discriminação política, religiosa ou racial. Pois não é que Fredi era severo opositor à participação da mulher em competições esportivas? Quando muito, aceitava que elas jogassem tênis e praticassem o arco e flecha. Somente em 1912, para escândalo do Barão, as mulheres foram admitidas para disputar provas de natação. Tristinho, pediu demissão do cargo de presidente do Comitê Olímpico Internacional. As mulheres conquistaram o direito de disputar oficialmente as provas olímpicas em 1928. Por desaforo, sete anos antes disso, em 1921, as senhoritas catarinenses e tremembeenses disputaram a primeira partida de futebol feminino no País. O resultado desse jogo se perdeu na escura noite do passado.
Fredi não estava sozinho em toda essa discriminação. A imprensa também. As primeiras referências na Imprensa Internacional às exibições esportivas femininas só aparecerem em 1900. E olhem o machismo dos nossos governos e cartolas: agora pouco, em 1964, data do golpe militar, o Conselho Nacional de Desportos, o CND, proibia a prática do futebol feminino no Brasil. E instituía a obrigatoriedade do teste de feminilidade. A decisão foi revogada duas décadas depois, no fim da ditadura. Em 2007 as meninas foram campeãs olímpicas e vice mundial no futebol.
Antes disso, o Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, “normatizava”.
(meu Deus!) a prática esportiva feminina. Proibia às mulheres os esportes que considerava incompatíveis com as condições femininas, tais como luta de qualquer natureza, futebol de salão, futebol de praia, pólo, pólo aquático, halterofilismo, beisebol.
Sabem qual primeira atleta brasileira a participar de uma Olimpíada? Foi a nadadora Maria Lenk, 17 anos, em Los Angeles, 1932. Era a única mulher e mascote da delegação olímpica.
Cara amarrada lá no céu (no céu?) Coubertin teve de engolir as meninas brasileiras subindo em pódiuns! A paulistana Ada Rogato voa sozinha as três Américas, em 1951. Primeira aviadora do mundo a percorrer uma quilometragem tão extensa em vôo solitário, meio século depois da invenção do avião.
Sabe aquela olimpíada que amarrou a cara do Hitler, em 1936? Lá, Maria Lenk, favorita nos 200 metros nado de peito, revela-se uma grande inovadora no estilo livre. Na ocasião, Lenk bate dois recordes mundiais, nos 200 m e 400m nado de peito, para amarrar mais ainda a cara dos preconceituosos. Piedade Coutinho e Scyla Venâncio participaram então nos 400 metros nado livre.
Em 1939 há a criação do Curso de Educação Física na Universidade do Brasil, atual UFRJ. Entre as fundadoras do curso estavam Ivete Mariz e Maria Lenk. Em 1949, quando o Jornal dos Sports criou os Jogos da Primavera, também conhecidos como as Olimpíadas Femininas, Piedade Coutinho foi escolhida para conduzir a bandeira nacional no desfile de abertura.
Em 1945 Ivete Mariz bate o recorde brasileiro do arremesso do disco com 37m40 e sagra-se campeã sul-americana na modalidade, campeã carioca de dardo, vice- carioca de vôlei, atletismo e arremesso de peso. Viu, Fredi?
Na política
Eugenia Moreira, primeira jornalista de que sem tem notícia no Brasil, tinha 16 anos quando escrevia artigos em jornais afirmando que “a mulher será livre somente no dia em que passar a escolher seus representantes”.
Em 1920, os homens dos Estados Unidos concediam direito de voto às mulheres. Três anos antes, 1917, a professora Leolinda Daltro comanda passeata exigindo a extensão do voto às mulheres no Brasil. Treze depois, 1930, os homens do Senado concedem esse direito. Mas os homens do Estado Novo de Getúlio Vargas, não.
Dois anos depois, 1932, o próprio Getúlio concede direito de voto às mulheres brasileiras. Por trás dessa concessão, um interesse, o apoio feminino. Só em 1934 elas obtiveram o direito de votar e serem votadas.
Então, Antonieta de Barros elege-se deputada estadual, pelo Partido Liberal Catarinense, 1934. Foi a primeira mulher negra a exercer um cargo político no Brasil. A primeira eleitora do País foi Celina Guimarães Vianna, no Rio Grande do Norte. A do Espírito Santo foi Emiliana Emery Viana.
E lá vêm elas, as primeironas, com seu poder de realização e conquistas na política, em diferentes datas. São as deputadas Quintina Diniz Ribeiro, eleita em Sergipe; Carlota Pereira de Queiroz, em São Paulo; Almerinda Farias Gama, Assembléia Nacional Constituinte; Oliva Enciso, vereadora de Campo Grande e deputada estadual de Mato Grosso; Maria José Nogueira Pena e Marta Nair Monteiro, pioneiras da Assembléia Mineira; Adalzira Bittencourt, deputada em Pernambuco; Maria de Miranda Leão, no Amazonas; Rosa Pereira, no Pará.
Houve um Partido Republicano Feminino, no Rio de Janeiro, em 1910, fundado pela professora Leolinda de Figueiredo Daltro. O objetivo do partido foi promover a cooperação feminina na defesa das causas relativas ao progresso do país. Os Coubertins da vida se escondem, envergonhados.
Na cultura
Em 1963, Bettty Fridan escreve “A mística feminina” que, juntamente com o “Eunuco feminino”, de Germaine Green, em 1970, apresenta uma crítica feminista do papel subordinado da mulher na sociedade. Elas já se consideram, pelo menos, donas de seus corpos.
Em 1908, Nicolina de Assis recebe a medalha de ouro na Exposição Nacional do Rio de Janeiro. É considerada a pioneira na arte da escultura. Suas obras podem ser encontradas em praças, jardins e cemitérios de diversas cidades brasileiras.
Em 1918 é constituída, no Rio de Janeiro, sob a liderança de Bertha Lutz, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Um ano antes, Bertha propusera a criação dessa associação de mulheres visando a “canalizar todos esses esforços isolados”, da luta feminina. Em 1937 surge a Associação Brasileira de Engenheiras e Arquitetas, no Rio de Janeiro.
Em 1936, Cordélia Ferreira inaugura o rádio-teatro no Brasil.É considerada a primeira radio-atriz brasileira. É realizada, em 1946, a “Primeira Exposição do Livro
Feminino”, no Rio de Janeiro, organizada pela advogada, escritora e feminista Adalzira Bittencourt.
Em homenagem a Orsina Francione da Fonseca, primeira-dama do presidente Marechal Hermes da Fonseca, o “Instituto Profissional Feminino” passa a se chamar “Ginásio Industrial Orsinda da Fonseca”. A homenageada era preocupada com as causas sociais e foi atuante nas ações de assistência aos mais necessitados.
Em 1950 era fundada a Associação Brasileira de Mulheres Médicas. Em 1954, Dinah Silveira de Queirós recebe o prêmio “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras. A atriz e feminista Ruth Escobar inaugura, em 1964, o Teatro Gil Vicente com a peça “A ópera dos três vinténs”. O teatro, após a peça, passou a se chamar ”Teatro Ruth Escobar”. Na política, Ruth interpretaria texto significativo que acionou a retomada da conquista das liberdades no país.
E foi o seguinte o desabafo de Ruth Escobar no sepultamento do jornalista Wladimir Herzog, no cemitério israelita, em São Paulo, morto pela repressão do regime militar em 1975, considerado a marca da exaustão da ditadura e tomada de posição do Brasil pelo fim da quartelada implantada em 1964. “Até quando vamos assistir calados os assassinatos de nossos filhos”? – indagou a corajosa mulher. O Brasil se arrepiou.
*Apollo Natali é jornalista, formado aos 71 anos, depois de 4 décadas atuando na imprensa. É colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna Desabafos de um ancião”.

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