Por Noemi Jaffe
“Noemi, sabe qual é a gíria que se usa aqui no presídio para sentenças pequenas, de dois, três anos? É ‘cadeia de poeta’. Isso porque se a pessoa pega uma pena longa, decente, de uns vinte anos, ela consegue juntar economias aqui dentro para ter um futuro quando sair. Com dois, três anos, ela não consegue juntar quase nada e quando sai daqui não tem futuro nenhum esperando por ela lá fora. É como um poeta.”
Essa foi só uma das coisas que as dezesseis detentas do Clube de Leitura da Penitenciária Feminina de Sant’Ana me ensinaram na sexta-feira, dia 09 de março, quando fui até lá para conversar com elas sobre dois poemas de Drummond: “Infância”, do livro Alguma poesia, e “Ausência”, escrito em homenagem a Ana Cristina César, e que está no livroCorpo.
Posso dizer, sem exagero, que minha leitura interpretativa dos dois poemas foi, em grande parte, conduzida pelas questões surpreendentes que elas iam fazendo. Muito do que falei não tinha sido planejado, mas foi sendo construído ali mesmo, à medida que elas mostravam novas possibilidades de leitura. Assim, a Clarice, por exemplo, disse que tinha pensado, a partir do poema “Ausência”, que a diferença entre as ideias de “falta” e de “ausência” é que “falta é o que não se tem” e “ausência é o que se tem”. Ao final da interpretação, a Laura disse, espantada e me espantando, que lá no presídio, então, elas “têm tudo”, já que para elas “tudo é ausência.”
Pensar a saudade não somente como algo que entristece e reitera a precariedade da vida, mas também como a presença da ausência e, dessa maneira, dar à saudade o conteúdo de algo que se possui e que determina a individualidade, foi uma grande libertação para todas nós.
E assim foi também com o menino que não sabia que sua história “era mais bonita que a de Robinson Crusoé” e o reconhecimento de que isso só pode acontecer porque sua história é real e própria e a de Robinson Crusoé é ficcional e alheia; que coisas como um pai que campeia, uma mãe que coze e um irmão que dorme podem ser mais importantes e literariamente legítimas do que aventuras, naufrágios e grandes conquistas.
Suas descobertas eram semelhantes às que nós do grupo também fazíamos, vendo-as se encantar com o fato de que “poesia não precisa só falar de amor” e “que não precisa ser romântica”. Enquanto elas falavam, nós, do lado de cá, também descobríamos que o lado de lá é cheio de nuances e de complexidade. A Soraia, por exemplo, foi aos poucos mudando a expressão séria para um sorriso discreto que a acompanhou até o final da aula. Ela não tinha um rosto único.
Ninguém tem.
Éramos somente mulheres ali sentadas: as mulheres do grupo de leitura, as funcionárias da coordenação pedagógica do presídio, além de Vanessa, Janine, Sofia, da Companhia das Letras, e eu. Algum tipo de aliança se estabeleceu para que elas pudessem se sentir donas dessa saudade que, essa sim, ninguém tira delas, e nós, aprendizes de uma saudade que, provavelmente, nunca vamos sentir: essa ausência de tudo. Mas, por sermos todas mulheres e leitoras de poesia (ao menos naquelas duas horas), alguma coisa entre nós se igualou.
Na nossa saída do presídio, uma detenta estava sendo solta. Ela corria de um lado para o outro da rua, gritando: “Estou vendo o sol, vou ver a lua!”. De repente, um estrondo: o asfalto cedeu e provocou um buraco enorme na rua justamente quando o carro que veio nos buscar dava a ré para manobrar..
Tivemos que tirá-lo de lá, enquanto a mulher ainda rodava pela calçada.
Naqueles poucos minutos, a realidade daqui de fora parecia continuar o espaço de sonho que tinha sido criado lá dentro.
Mas logo passou. Agora, de novo, estamos aqui e elas estão lá. Não sei quem elas são, nem elas sabem de mim. Mesmo assim, pelo menos aqui comigo, eu tenho uma ausência a mais.
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim: - Psiu… Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro… que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
* Os nomes das participantes do Clube de Leitura são fictícios.
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