sábado, 14 de julho de 2012

Como fazer uma piada de estupro

estupro


Como fazer uma piada de estupro
Lindy West

Os Estados Unidos passaram por uma polêmica parecida com a piada do Rafinha Bastos quando disse que “comeria” Wanessa Camargo “e o bebê”, para não mencionar outras piadas consideradas “pesadas” que geraram críticas do público no Brasil. O comediante norte-americano Daniel Tosh fez algumas piadas sobre estupro na Laugh Factory em Hollywood, a platéia feminina disse a ele que “piadas de estupro nunca serão engraçadas” e em resposta Tosh disse que seria hilário se elas fossem estupradas em massa no clube. 
Neste ponto a conversa descambou para dois pólos diferentes: feministas ultrajadas argumentando que “piadas de estupro nunca terão graça” e comediantes defendendo aos prantos como a “polícia do pensamento” está “silenciando” eles. (O proprietário da Laugh Factory contesta tudo dizendo que Tosh fez um “comentário” sobre estupro e não uma “piada”, mas é bem irrelevante ampliar o que ele diz aqui). Eis o problema: todos estão errados. Eu na verdade concordo com o sentimento de Daniel Tosh nesta merda de twit (“O ponto é que eu estava defendendo antes de ser interrompido é que há coisas terríveis no mundo, mas você pode fazer piadas sobre elas #bebêsmortos”). O mundo é cheio de coisas terríveis, incluindo estupro e é ok fazer piada com isso. Mas os melhores comediantes usam sua arte para pegar horríveis partes da sua vida e transformá-las em coisas melhores, não piores. A chave é — a menos que você queira ser chamado de “pau com gosto de lixo” na internet por mim e outros humanos com almas e cérebros — ser uma pessoa responsável ao construir suas piadas. Façamos isso, desde que as nuances da sua responsabilidade pessoal cheguem a algumas pessoas. Vamos descobrir como fazer piadas de estupro a seguir.
Homens comediantes: isto não é um problema que oprime vocês. Vocês sabem que a “polícia do pensamento” não é uma coisa real, certo? (Eu quero dizer, não mais — ela foi a primeira coisa a ir embora com a recessão e, no Brasil, com a ditadura, ainda que muita gente processe os comediantes). Em nenhum ponto do futuro um avô brilhantes diria “quando eu tinha a sua idade, netinho, nós tínhamos estas coisas chamadas ‘piadas’. Mas então elas foram para o lado do humor de estupro e nosso racismo, então a comédia morreu e as gargalhadas foram abolidas”. Eu tenho certeza que há algumas piadas que não envolvem mulheres sendo estupradas. De 100 para mais! E ninguém está tirando seu direito de falar sobre estupro, fazer piadas sobre estupro ou usar a palavra “estupro”. Nenhuma desmancha-prazeres feminista está prendendo você e seu cérebro por sua merda de piada de estupro.
Parece improvável mas, depois desse acontecimento, Daniel Tosh foi demitido do Comedy Central. Uma pessoa sendo removida de uma posição de poder de uma companhia privada (o Comedy Central não é parte do Governo dos Estados Unidos, para sua informação) depois de falar em público não é uma afronta à liberdade — é parte integral da liberdade. Quando você faz coisas que as pessoas não gostam, pessoas podem parar de comprar seu produto. Este é o acordo.
No caso isto ainda não está perfeitamente claro ainda: você pode dizer o que quiser.
Você pode dizer o que quiser. Você pode dizer o que quiser. Você pode dizer o que quiser.
Você pode dizer o que você quiser.
Como foi dito, um clube de comédia não é um espaço sagrado. É um cara com um microfone de pé no palco geralmente com a altura de um andar acima do chão. E o lado do microfone que te dá um poder maravilhoso — wow, agora você pode realmente dizer o que você quiser! — é que audiência reage à suas palavras como ela quiser. As defesas ecoando pela internet são “vocês simplesmente não entenderam isso — comediantes precisam de liberdade. Assim é feita a comédia. Se você não quer ser ofendido, então fique de fora dos clubes de comédia”. Vocês estão certos, exatamente certos. A comédia é feita assim. Então CONSIDERE O SEU FEEDBACK. Noventa por cento do seu material sobre estupro não está funcionando e você pode dizer que não está funcionando porque sua audiência está dizendo que ela odeia estas piadas. Este é o feedback que você procurou.
Se as pessoas não querem ser ofendidas, elas não deveriam ir aos clubes de comédia? Talvez. Mas se você não quer que pessoas reajam às suas piadas, você não deveria estar no palco contando suas piadas para as pessoas.
A fetichização de não se censurar, de dar uma “oportunidade igual ao ofensor” é bizarra e ruim para a comédia. Quando você “não censura a si mesmo” vem uma coisa ruim? Nós nos censuramos o tempo todo porque nós não somos intitulados sociopatas. Sua namorada está censurando a si mesma quando ela diz que está ok com o fato de você jogar Xbox o dia inteiro. De um lado, a comédia está censurando a si mesma — a comédia está selecionando as palavras certas para fazer as pessoas rirem. Um comediante que não censura a si mesmo é apenas um cara gritando. E ser “uma oportunidade igual para o ofensor” — assim como, “é ok, porque Daniel Tosh fez piadas com TODAS as pessoas: mulheres, homens, vítimas da AIDS, bebês mortos, caras gays, blá blá blá” — cai por terra quando você lembra (como nós somos forçados o tempo todo) que todas as pessoas não estão em iguais posições de poder. “Ah, não se preocupe — eu soco todo mundo na cara! Pessoas, bebês patos, um leão, a lei de tal estado, o oceano…”. Tudo bem, o patinho está morto agora. E você é um assassino de patos. É realmente fácil acreditar que “nada é sagrado” quando a santidade do seu corpo e sua liberdade nunca estão tratadas de forma legítima.
De acordo com o CDC, uma em quatro estudantes denunciam que foram abusadas sexualmente (e quando você considera que muitos estupros não são denunciados por causa do modo como nós temos vergonha das vítimas e vemos estupros como algo trivial, o número real é muito maior, na certa). O que significa que se você é um comediante se apresentando em um local cheio, há uma grande e boa chance de ter ao menos uma pessoa na platéia que já foi abusada sexualmente. Se você não sabia disso, agora sabe. Parabéns. Então quando você faz uma piada neste local que deixa o estupro trivial ou zomba de vítimas de estupro, você está deliberadamente (porque você sabe!) prejudicando estas pessoas. De propósito. Não porque você é um estuprador — você provavelmente não é — mas porque você é egoísta e amador e preguiçoso e assustador.
A razão que o tema “piadas de estupro” tornou-se uma questão controversa como outras do tipo, “piadas com câncer” ou “piadas com bebês mortos” é porque o estupro é diferente de outros horrores em vários aspectos.
Digamos que você sabia do fato de que ao menos uma das pessoas da platéia foi mutilada em um acidente com debulhadoras industriais usadas no campo — APENAS PENSE COMIGO AQUI — e os Estados Unidos vivem em uma cultura onde as vítimas de acidentes com debulhadoras industriais são rotineiramente responsabilizadas/envergonhadas por sua própria morte e/ou desfiguramento porque eles usavam as roupas “erradas”. Ah, e 90% dos comediantes (você mesmo incluso) são máquinas debulhadoras também, mas desde que você é esta jovem e liberal marca de debulhadora industrial com novas regras de segurança para suas presas e você fervorosamente não acredita na desfiguração de humanos, você pensa que é um grande jogo fazer “piadas” sobre humanos idiotas tendo suas faces e membros mutilados por outras muito mais sinistras máquinas debulhadoras. Mas você realmente pensa que isto não irá traumatizar alguns humanos? Mesmo se você tiver “brincando”? Se você se importa muito sobre humanos não serem picados até a morte, então você não deveria preferir, sei lá, mostrar seu novo material para grãos de soja?
Parte do progresso é a constante reavaliação de si mesmo e dominar o que você faz. Aqui eu começo. Eu fiz uma piada de estupro uma vez e eu genuinamente lamento por ela. Dois anos atrás, no meu review sobre Sex and The City 2, eu escrevi:
Sex and The City 2 pega tudo o que eu prezo como mulher e ser humano — trabalhar duro, contribuir para a sociedade, não ser uma puta como é este meu trabalho — e estupra até a morte com um sapato que custa mais do que meu carro.
Eu escolhi “estupro” de propósito na época — porque isto era uma coisa de gênero e chocante o bastante para eu conseguir transmitir meu tamanho desgosto, como uma mulher, com esse filme idiota. Mas se eu fizesse o mesmo review hoje, escreveria da mesma forma? Não. Eu provavelmente escreveria “violentada”. Porque agora, como eu vejo isso, não há influência cultural sistemática que leva à violência em massa de pessoas. Eu gostaria de não contribuir para uma cultura de violência. Eu, Lindy West, peço desculpas.
Então, vamos à comédia. Isto não significa que todo mundo é obrigado a ser um salvador da humanidade. Você pode ser irritável e estranho e ofensivo e trivial e, sim, você pode falar sobre estupro. Fazer comédia em frente a um clube silencioso é assustador e pessoas chocadas são um jeito fácil de conseguir uma reação. Mas se você quer que pessoas não te odeiem (e querer não ser odiado não é a mesma coisa de querer ser amado), você deveria provavelmente tentar ser responsável. Dica rápida: NÃO FAÇA COM QUE AS VÍTIMAS DE ESTUPRO SEJAM O ALVO DA PIADA.
Aqui estão quatro “piadas de estupro” que, na minha opinião, funcionam:
1. Borat
“No Cazaquistão os hobbies favoritos são dança, arquearia, estupro e tênis de mesa”
Ok. O que é engraçado? Quem é o alvo da piada? Vítimas de estupro? Não, eu diria que o alvo da piada é o Cazaquistão ou, pelo menos, a caricatura do Cazaquist]ao que Sasha Baron Cohen construiu. Ele está satirizando a misoginia casual de um certo conjunto de homens anti-semitas e pós-soviéticos da Europa Oriental em seus ternos fedidos. E eu não tenho problemas com isso. Penso eu poderia estar errada! De novo: nada de polícia de piadas! Cultura evolui! (Esta piada é mais certamente ofensiva aos cazaquistaneses, mas alguém pode ter a tarefa de piadas anti-Cazaquistão também).
2. Louis CK
“Eu não estou fazendo apologia ao estupro, obviamente — você não deveria estuprar ninguém. A não ser que você tenha uma razão, como se você quiser foder alguém e ela não quiser”
Aqui está o porquê desta piada não me fazer sentir uma merda: Louis CK passou 20 anos mostrando de forma muito clara que ele está do lado de quem quer fazer as coisas melhores. Os opressores nunca se sairiam bem com o final de suas piadas. Este é o porquê é fácil dar a ele o benefício da dúvida que esta piada está tirando sarro dos estupradores — especificamente o absurdo e horrível senso de direito de fazer com o corpo de uma pessoa o que você faria se tivesse fome e o corpo fosse um delicioso sanduíche. O ponto é, somente um psicopata de verdade pensaria assim e a simplicidade da piada deixa isso claro. Louis CK é possivelmente o maior comediante do mundo, mas não significa que ele esteja sempre certo. Eu penso que até o próprio Louis CK te diria isso. E eu garanto a você que ele coloca a si mesmo e à sua audiência um nível acima quando examina minuciosamente todas as piadas. Este é o porquê das piadas serem boas.
3. John Mulaney (veja aqui)
“Tarde da noite, na rua, mulheres me vêem como uma ameaça. Isto é engraçado — sim! Isto é engraçado. É como se alguém que quisesse me elogiar tivesse no meu caminho, mas ao mesmo tempo é estranho porque eu continuo com medo de ser sequestrado”.
Comediantes são pessoas contando histórias sobre o mundo e é ok rir do horror e falar abertamente sobre as coisas feias. Esta é uma das melhores “piadas de estupro” de todas, porque é um comentário honesto no nosso “clima cultural” fodido. O alvo da piada é John Mulaney. A mulher correndo de John Mulaney não está sendo ridicularizada. A piada é sobre como é assustador ser uma mulher e como é fácil para os homens serem distraídos. Esta piada é uma mão na roda.
4. Ever Mainard
“O problema é que toda mulher na sua vida inteira tem um único momento onde pensa “Oh, este é meu estupro!”
Muito simples: esta não é uma piada sobre mulheres serem estupradas — é uma piada sobre como a cultura do estupro, que inclui piadas de estupro, fazem as mulheres se sentirem. É como a diferente entre um humorista negro fazendo uma piada sobre o que sente ter pessoas brancas que tratam você como se você fosse estúpido o tempo todo versus um comediante branco fazendo uma piada sobre o quão estúpidas as pessoas negras são.
Então agora é com você. Vê? Ninguém está dizendo que você não pode falar sobre estupro. Apenas seja uma pessoa minimamente decente sobre isso ou faça o mundo ficar um pouco pior.
Eu não sou comediante, mas eu já fiz comédia (e lamento ao ter contado piadas), eu vivi com humoristas, eu saí com eles, eu escrevi piadas para viver e eu tive ao mesmo tempo experiências transcendentes e decepcionantes em clubes de comédia. Eu não estou dizendo isso porque eu odeio comédia — eu estou dizendo isso porque eu amo comédia e eu quero que ela seja acessível a todo mundo. E exatamente agora a comédia como um todo é muito hostil com as mulheres. Eu lembro-me da emoção que senti a primeira vez que vi Anthony Jeselnik dizer coisas abusivas com alegria e sem-vergonha, e eu era uma dessas que curtia fazer humor agressivo. Mas eu sou uma adulta agora, eu estou um pouco envergonhada da minha própria juventude, e eu aposto que em 15 anos anos maioria dos apologistas ao estupro nas piadas estarão envergonhados de lembrar que isso aconteceu um dia.

Jezebel

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