domingo, 9 de dezembro de 2012

A inocência da galinha

A inocência da galinha

Ao julgar e condenar sem provas, quem quer que seja, fabrica-se um crime e, por vingança, ou para demonstrar “quem é que manda”, condena-se

Ademar Bogo - Brasil de Fato

Há um velho conto de domínio público que trata da natureza e do caráter de cada ser. Narra ele, que uma galinha ao encontrar em seu ninho um ovo de cobra junto aos seus, apesar da não aprovação e dos protestos das demais galinhas, decidiu chocá-los, confiando que, estando ela no comando do ninho, a pequena cobra nasceria e se comportaria como as galinhas. Ledo engano, a cobrinha que inicialmente convivia com os pintinhos, com o passar do tempo passou a se alimentar deles. No entanto, a galinha, confiante em sua autoridade, embora visse os filhotes serem sacrificados, seguia com seu perfil tolerante e conciliador, até que um dia, viu-se ela própria como alvo do bote da cobra.       
Há pelo menos duas maneiras de considerar a inocência acima descrita no mundo dos homens: covardia, quando alguém é julgado e condenado sem culpa alguma; ou ingenuidade e crença em cargos ou instituições que por natureza agem de acordo os princípios da dominação. Ambas as expressões podemos encontrá-las no julgamento do Supremo Tribunal Federal que a mídia propaga como “mensalão”.             
No primeiro caso, ao julgar e condenar sem provas, quem quer que seja, fabrica-se um crime e, por vingança, ou para demonstrar “quem é que manda”, condena-se. Daí que não interessam as provas nem os argumentos dos advogados de defesa. O processo condenatório já vem montado antes mesmo de se instalar o julgamento, e tudo o que for dito não agrega nem retira o que já está escrito e sentenciado.                    
Por outro lado, confiar ingenuamente em supostos amigos de natureza ideológica oposta, pode levar a consequências desastrosas, senão vejamos: usa-se como argumento que o julgamento sofre uma pressão exagerada da mídia que insufla ao linchamento prévio. Mas, da mesma forma que a nomeação dos juízes, pelo governo do partido condenado, quem foi que renovou a concessão da Rede Globo em 2008 por mais quinze anos e, em nome da liberdade de imprensa, não lhe impôs nenhum compromisso ético? Quem foi que primou desde 2003, por favorecer os grandes veículos de comunicação, com verbas e propagandas pagas, em detrimento dos pequenos veículos, emissoras de rádios comunitárias e outras alternativas de resistência, que são constantemente golpeadas pelo mesmo poder judiciário? Não ter-se-ia em nome da governabilidade chocado o ovo da serpente que cresceu e comeu primeiro os movimentos populares e, agora famintos, comem os seus colaboradores?         
Para ilustrar tamanha inocência, podemos tomar a tese de Karl Marx escrita em uma carta em 1946 onde observou: “Uma bela manhã, a esquerda poderá descobrir que a sua vitória parlamentar e a sua derrota coincidem”. Em nosso caso, não porque nada se fez com a vitória parlamentar, mas pelas consequências que se permitiu criar; pelo fortalecimento da natureza retrógada do poder e pela dispersão, desorganização e fragilização da resistência popular que já não reage nem diverge da mídia e da truculência dos poderes. Se no jargão conciliador, ousou-se conclamar que o governo era “para todos” e assim se fez; esqueceu-se que o poder judiciário e a mídia eram para a classe dominante.             
Os movimentos populares organizados, alijados das conquistas e da vitória parlamentar pelo poder executivo, já sentem a tempo a frieza da mídia e do poder judiciário que, pelas mesmas mãos do Ministério Público, que oferece acusações sem provas, criminaliza para que não haja qualquer reação.      
Como todos sabem o mensalão nunca existiu. Mas a esquerda, que em nome da governabilidade, desde o início governou para agradar os inimigos com as costas voltadas para os clamores dos aliados históricos, paga o preço por ter chocado os ovos alheios. Já sem forças nem vontade e condições de voltar atrás, todos os que foram, de um jeito ou de outro, serão comidos pela serpente, representada pelo projeto do capital; ingenuamente compreendido como “governo em disputa”.   

Ademar Bogo é filósofo, escritor e agricultor 

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