quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Julgamento em instância única desrespeita acordo internacional

Julgamento em instância única desrespeita acordo internacional

Por João Novaes, do Opera Mundi
Os réus da Ação Penal 470 do STF (Supremo Tribunal Federal), conhecida como processo do mensalão, poderão alegar às cortes internacionais que não usufruíram do pleno direito à defesa por terem sido julgados apenas por uma instância. A opinião é do advogado constitucionalista argentino Pablo Ángel Gutierrez Colantuono, especialista em direito administrativo.
Gutierrez, professor da Uncoma (Universidade Nacional de Comahue), na província de Neuquén, oeste da Argentina, lembra que o Pacto de San José da Costa Rica estabelece o direito a cada réu recorrer a ao menos duas instâncias judiciais em caso de condenação. Nesse julgamento, mesmo contando com um relator (o ministro Joaquim Barbosa) e um revisor (o ministro Ricardo Lewandowsky), o argumento pode ser considerado válido para ser enviado aos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (formados pela Comissão e a Corte). Gutierrez no entanto, lembra que não se tratará de uma anulação de sentença, mas apenas de um pedido para que haja um julgamento em mais uma instância.
O advogado está em São Paulo para participar de uma série de eventos, entre eles, do seminário “Direito Público na Atualidade: diálogos latino-americanos”, na sede da escola da AGU (Advocacia-Geral da União), no centro de São Paulo, realizado nesta terça-feira (27/11). Um dia antes, ele conversou com a reportagem de Última Instância e Opera Mundi sobre a evolução dos direitos humanos na América Latina, o papel da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) e a necessidade de se debater dispositivos de regulação da mídia.
Gutierrez também defende que os países signatários do Tratado de San José, na Costa Rica, revoguem as leis de anistia política que isentam os crimes cometidos pelos governos nas eras de ditaduras, como ocorre na Argentina. Por 7 votos a 2, em abril de 2010, o STF, entendeu que a Lei de Anistia brasileira (1979) não teria perdido a sua validade jurídica. Já a CIDH, após julgar o caso “Guerrilha do Araguaia”, determinou que o país deveria investigar os crimes cometidos durante o período ditatorial (1964-1985) e que essa lei carecia de efeitos jurídicos. Por outro lado, o Brasil só aceita submeter-se à CIDH em relação a fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.
Veja a íntegra da entrevista abaixo:
Última Instância – Qual sua opinião sobre os eventuais avanços e retrocessos na questão dos direitos humanos na América Latina?
Pablo Ángel Gutierrez – A região deu um grande salto nessa questão, sobretudo nos países que reorganizaram seu sistema democrático e que decidiram investigar os crimes contra a humanidade cometidos durante suas respectivas ditaduras militares.
A Argentina, por exemplo, revisou este período de sua história (1976-1983) após determinação da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos). As leis de anistia vigentes, que colocavam um “ponto final” na questão, foram declaradas sem nenhum valor, mesmo que tenham entrado em vigor posteriormente, durante o regime democrático: nulidade absoluta.
Baseado nisso, o país investigou a todos os participantes e autores dos desaparecimentos forçados de pessoas ocorridos na época, e condenou os militares que tomaram o governo. É importante destacar: na Argentina, esses delitos de lesa-humanidade são imprescritíveis. São delitos tão graves, que não afetam somente uma pessoa, mas a humanidade como conceito geral, que o Estado está obrigado a investigá-los e sancioná-los penalmente.
Na América Latina também se deu a particularidade da busca pela verdade. Sem ela, não existe um sistema sério de democracia. Porque nós devemos saber o que ocorreu nesse período histórico para saber qual é a nossa raiz em termos de direitos humanos.
Os países na América Latina têm posturas diferentes. Alguns investigam mais esses crimes do que outros. Mas todos os signatários do Sistema Americano de Direitos Humano. Ao qual pertence a CIDH, estabelecida pelo Pacto de San José, na Costa Rica, estão obrigados a fazê-lo.
Última Instância – No Brasil, alguns advogados dos condenados na Ação Penal 470 declararam que vão apelar às cortes internacionais. Mas a opinião pública do país questiona o poder de interferência da CIDH na soberania do Judiciário brasileiro. Como as determinações da Corte são tomadas pela maior parte dos países signatários do Pacto de San José?
Gutierrez – Cada signatário decidiu integrar-se ao acordo de maneira soberana, não houve imposição do direito internacional aos seus sistemas internos. Ninguém os obrigou. E, também de maneira soberana, se submeteram à jurisdição à CIDH. Então, quando esta entende que, em um deles, ocorreu uma violação de direitos fundamentais, quem tem a última palavra é ela. Estão todos obrigados a seguir suas determinações, há um princípio de boa fé que implica os tratados e suas respectivas sentenças sejam cumpridos. Não é um problema de soberania, mas de respeito aos direitos das populações de cada um desses países. Uma vez que estejam esgotados todos os recursos judiciais internos dentro de um país, as pessoas que se sentirem afetadas poderão recorrer à Comissão Interamericana. Ela decide se toma o caso e o apresenta à CIDH.
Nesse trâmite, há uma obrigação fundamental: o respeito ao devido processo legal, uma garantia a todos os requerentes para que seu caso seja tratado nas seguintes condições: independência do juiz; imparcialidade do juiz; prazo razoável; devida fundamentação da sentença; e que esta tenha sido apelável ao menos em duas instâncias, obrigando cada um dos sistemas judiciários internos que, quando houver um juízo penal, ele seja revisado integralmente por um juiz distinto.
Última Instância – Nesse julgamento citado, o do Mensalão, ocorreu somente em uma instância: o STF (Supremo Tribunal Federal).
Gutierrez – A CIDH diz que são necessárias duas instâncias internas. Está no artigo 8 do Pacto de San Jose, nos parágrafos de 1 a 5. Assegura a obrigação de que o Estado organize sua estrutura judicial respeitando duas instâncias mínimas, além dos outros fatores citados. Não importa a natureza do delito, pode ser um caso de corrupção ou um homicídio.
Última Instância – Nesse caso, em tese, algum acusado poderia apelar à CIDH alegando que não teve exercido seu direito de defesa na totalidade?
Gutierrez – Exatamente. Deve ao menos dar o direito de ter uma segunda instância, com outro juiz que possa o enquadramento legal, o fático, a valoração das provas, etc. Mas não estou falando desse caso em concreto.
Não há novidade nisso. A Justiça se entende a partir do respeito de determinadas garantias. Todo o aparato estatal, os três poderes, são uma organização que se arma para respeitar os direitos fundamentais, tanto individuais quanto sociais.
Última Instância – O Brasil cumpre as determinações?
Gutierrez – Sim, o Brasil foi condenado a algumas sentenças e tem se esforçado para cumpri-las. Assim como a Argentina. Isso não exclui o fato que ele tenha alguns comportamentos que precisam ser mudados, como esse caso da necessidade de segunda instância [para todos as ações penais].
Última Instância – Como as legislações latino-americanas avançaram no combate à corrupção?
Gutierrez – É um tema complexo e importantíssimo. Mas deve-se lembrar que envolve tanto agentes públicos quanto os privados, é um problema de duas partes que muitas vezes só é analisado como consequência de ação do primeiro agente, pouco se analisa o que faz quem tem a disponibilidade e a pressão econômica.
A América Latina firmou uma série de convênios na Convenção Interamericana contra a corrupção, dispositivo também obrigatório para os signatários. Falta muito a fazer dentro dos sistemas de cada país, e aí é fundamental um sistema de educação para que culturalmente se entenda que a cada real perdido na corrupção, uma pessoa é privada de direitos como saúde ou educação.
Última Instância – Nesta terça-feira, o senhor participou de um seminário e tratará do tema “A publicidade oficial no direito argentino”. Como vê essa questão?
Gutierrez – É preciso achar formas de ser igualitário, não se pode beneficiar um veículo com grandes somas e a outros não dar nada.
É uma discussão que ocorre na Argentina com o objetivo de formular uma lei que versa sobre a destinação da “pauta publicitária”, termo usado no país para a verba destinada a variados veículos de imprensa para difundir a publicidade oficial. É preciso achar formas de ser igualitário, em prol da pluralidade da informação, sem beneficiar um veículo com grandes somas enquanto a outros não se dá nada.
Por outro lado, teria o Estado seja obrigado a lhe destinar um valor, mesmo que mínimo, para todos os veículos? Nossa corte federal disse que não, que ele é livre para eleger esse ou aquele veículo para fazer publicidade. Na medida em que sempre escolha meios de opiniões distintas, fazendo com que se consolide a ideia da diversidade de opinião.
Na Argentina, há um caso de repasse dessa verba a um determinado veículo de imprensa que, em seguida, denunciou um suposto tema de corrupção envolvendo o governo. Automaticamente, o governo retirou a verba. Então, esse veículo foi à Justiça e levou o caso à Suprema Corte de Justiça. Esta se baseou em decisões da CIDH e da Corte Europeia de Direitos Humanos, afirmando que o que ocorreu foi uma tentativa indireta de censura através do repasse da pauta publicitária.
O princípio geral é liberdade de imprensa e de expressão, e a obrigação da imprensa de difundir a diversidade de opiniões. O Estado deve regular a imprensa como regula qualquer outra atividade, sabendo que há um direito especial, o da liberdade de imprensa. E cuidar para que a regulação estatal não se transforme em censura indireta.
Mas não se deve ter medo dessa discussão.
Última Instância – A Lei de Médios na Argentina seria uma evolução importante nesse sentido?
Gutierrez – Uma evolução importantíssima, porque pauta uma regulação dos meios de imprensa de maneira democrática. A lei que regia os meios de comunicação na Argentina não era de uma época democrática. A novidade é que a atual trata de regular os monopólios.
Claro, sempre deve-se ter muito cuidado com tudo que envolve a imprensa, porque não se pode incidir em meios indiretos de censura, isso é inadmissível.
Última Instância – Juridicamente, especialistas em direito constitucional mencionam o conceito de regime de exceção quando ocorre uma suspensão de algum direito ou quando uma determinada ordem jurídica deixa de ser aplicada. De acordo com o constitucionalista Pedro Serrano, o problema é quando o próprio Poder Judiciário se torna a fonte desses regimes exceção. Teriam os dois últimos casos recentes de interrupção dos mandatos presidenciais na região latino-americana (Honduras em 2009 e Paraguai em junho deste ano) sido usados para legitimar e dar aparências de legalidade a manobras políticas de exceção?
Gutierrez – Por regra, não falo de sistemas que não conheço perfeitamente. Procuro respeitar a soberanias dos Estados-membros e seus povos. É complexo. Mas cabe aos juízes serem a última barreira para que não ocorra esse tipo de regime.
Última Instância – Reformulando a questão: acredita que, para um presidente democraticamente eleito, especificamente como Fernando Lugo, no Paraguai, ter tido duas horas para a defesa durante o processo que resultou em seu impeachment, constituiu um processo de defesa ampla?
Gutierrez – Certamente que não. Isso posso dizer claramente, não foi um respeito ao devido processo, mas  um teatro de um processo justo. No entanto, trata-se de um processo político institucional, e não partidário. Mas mesmo nos processos de destituição política, sempre se assegurou o direito ao devido processo, seja para um juiz, um presidente ou um legislador. É uma obrigação do sistema, ele não existe sem essa garantia.

0 comentários: