domingo, 20 de janeiro de 2013

Marie Curie fez ciência desafiando o machismo

Marie Curie fez ciência desafiando o machismo

Livro mostra como Marie Curie fez ciência desafiando o machismo

Ópera Mundi

Durante a descoberta dos compostos radioativos, a cientista teve de enfrentar as relações de gênero, os critérios de nacionalidade e de classe

Em Sobre o “Caso Marie Curie” (Alameda, 266 págs, R$ 40), o antropólogo Gabriel Pugliese traz uma contribuição à antropologia social, à antropologia da ciência e ao feminismo. O livro aborda a trajetória da pesquisadora polonesa que gravou seu nome na história ao descobrir dois elementos químicos - o rádio e o polônio - e desvendar o processo de liberação de energia radioativa pelos átomos.

A obra busca ir além das biografias já escritas sobre Madame Curie para analisar como os estudos da natureza dos compostos radioativos constituíram o caminho para a “anomalia” (termo usado por Pugliese na acepção grega que qualifica o desigual) na qual Curie tornou-se ao transpor as barreiras de gênero do mundo científico com tal destaque.

Ao longo do texto, o autor empenha-se em mostrar como o caso da radioatividade permite “ler como no mundo da ciência e dos laboratórios travam-se disputas as quais, colocadas em perspectiva, permitem iluminar nossas ‘caixas pretas’, no que se refere não apenas aos inventos, mapas, índices gráficos, mas também aos processos que envolveram disputas sociais e econômicas” e, “igualmente, políticas desiguais de gênero e de outros marcadores diferenças, como idade, região e classe”. Assim apresenta o livro Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do departamento de antropologia da USP e orientadora de Pugliese no mestrado que resultou, agora, no livro.
A força da história de vida de Curie se revela mais uma vez na forma como o tema de estudo de Gabriel foi escolhido, quase por acaso. “Eu estava interessado nas discussões de ciência e um amigo acabou me passando a biografia dela para ler. Em contato com essa biografia, feita pela filha dela, Ève Curie, decidi que ia estudar a radioatividade. E quando enviei o trabalho para o Congresso da Associação Brasileira de Antropologia, acabei ganhando um prêmio, e a professora Mariza Corrêa, que escreveu a orelha do livro, me cobrou bem enfaticamente que eu estudasse as relações de gênero. E no mestrado, acabei estudando bastante a literatura feminista e de gênero para dar conta do problema”, relata Gabriel. A dissertação foi apresentada em 2009 e agora chega ao grande público numa linguagem agradável mesmo aos não pesquisadores.

Gabriel frisa que seu objetivo não era nem fazer “denúncia”, nem assumir a questão de gênero como uma temática secundária, mas também não transformar o trabalho em um manifesto. “A ideia era explorar as diversas relações suscitadas pelo caso que permitissem pensar outras relações de gênero, outras produções científicas, para além do singular da Madame Curie. Do ponto de vista político, não era nem, de um lado, me esgueirar numa parcela específica da literatura feminista e, por outro lado, também não me esgueirar nas discussões mais epistemológicas da filosofia da ciência que, em alguma medida, tornam as relações de gênero secundárias”.

Para o autor, o centro do trabalho é demonstrar como a radioatividade precisou ser trabalhada. “E como, nesse processo de construção, de produção da radioatividade, as relações de gênero estavam contidas e com papel preponderante, o que não retira de maneira alguma o critério de realidade do próprio fenômeno da Física”.

Na busca de não apenas reiterar as barreiras de gênero, mas também de desmistificar a argumentação de que basta trabalhar direito que a opressão sexista não existe no campo científico, Gabriel discorre sobre o fazer científico de Marie Curie evidenciando as contradições inerentes à sociedade em que vivemos.

Alguns exemplos utilizados pelo autor são significativos. O desdém com que as descobertas de Marie Curie foram tratadas em sua primeira comunicação à Academia de Ciências de Paris, que só se viabilizou porque Gabriel Lippman – Nobel em Física pela descoberta da fotografia colorida, amigo do casal e ex-orientador de Marie – se dispôs a ler o comunicado da pesquisadora em meados de abril de 1898. As sucessivas recusas da academia ao ingresso de Pierre Curie e a não aceitação de Pierre como professor da Sorbonne até 1904. O fato de que o trabalho dela só deixou de ser ignorado na academia quando o marido assumiu a coautoria das pesquisas. A briga que Pierre teve de comprar junto ao comitê do Nobel para que o prêmio não fosse conferido a ele, ressaltando o papel de Marie à frente dos estudos. As dificuldades que os dois tiveram para conseguir a estruturação de um laboratório adequado, o que os fez entregar a saúde ao avanço da ciência por trabalharem durante anos num velho galpão sem nenhuma estrutura de proteção contra os efeitos da radiação. Por fim, o fato de Curie ter seu ingresso barrado na Academia de Ciências parisiense, o que curiosamente se deu no mesmo ano que ela recebeu o primeiro Nobel.

“O livro é uma tentativa de mostrar como a ciência não se faz somente cientificamente, mas que ela também é movida, na própria produção dos fatos, pelas relações de gênero, pelos critérios de nacionalidade e classe que tentei descrever”, afirma Gabriel.

Única mulher a ingressar no panteão dos agraciados com o prêmio Nobel em categorias distintas (Física, em 1903, dividido com o companheiro de vida e trabalho Pierre Curie, e o amigo Antoine Henri Becquerel; e Química, em 1911), Marie foi pioneira em muitos aspectos. A primeira a ganhar um Nobel, primeira professora universitária e coordenadora de um laboratório nos tempos modernos, primeira a ter um fenômeno da natureza ligado ao seu nome. Pugliese aborda ainda outros aspectos da vida de Marie Curie que guardam relação direta com a ação política da física que abriu uma nova perspectiva para a ciência. Ela sempre se recusou a patentear suas descobertas para que pudessem ser utilizadas na medicina (suas pesquisas revolucionaram a terapêutica de combate ao câncer). E sua dedicação i ncansável à pesquisa sempre se deu em combinação à maternidade, que influenciou a opção de sua primogênita, Irène, de seguir o caminho científico.

No Brasil, Sobre o “Caso Marie Curie” se destaca ainda por ser a primeira abordagem bibliográfica sobre a vida da mulher que desde cedo enfrentou resolutamente a opressão e o machismo, como na juventude, quando militou pela libertação da Polônia do czarismo russo, e em 1905 quando apoiou política e financeiramente o processo revolucionário na Rússia.


Sobre o “Caso Marie Curie” 
Autor:
 Gabriel Pugliese
Editora: Alameda
Quanto: R$ 40,00

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