quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Racista. Homofóbico. Machista. “nada contra, tenho até um amigo que é.”

Racista. Homofóbico. Machista. “nada contra, tenho até um amigo que é.”

meduim

O que antes era preconceito agora virou “opinião”.


Todo dia me deparo com um novo preconceituoso parcialmente assumido. Digo parcialmente porque preconceito assumido mesmo, com todas as letras, pouca gente tem coragem de ter. Como coisa repulsiva que é, o preconceito quase nunca é abraçado oficialmente. É tudo no tom da brincadeira. “Eu não tenho preconceito, mas viadagem tem limites”, “Eu não tenho preconceito, mas essas feministas de peito de fora…”, “Eu não tenho preconceito, mas custa a pessoa fazer um regime?”, e por aí a fora.
Quanto mais as pessoas usam a internet pra expressar o que elas são, mais fácil parece poder representar que você não gosta daquilo. É como eu disse, não é mais preconceito, é opinião.
E dentro do grande conceito de preconceito já nascem os filhotes, mini-preconceitos, preconceitos de coisas em determinadas situações. “Não tenho nada contra gays, mas beijar em público já é demais”, “Não tenho nada contra mulheres, mas dirigir já é demais”, “Nada contra tatuagens, mas não contrataria uma pessoa assim”. Estou me referindo apenas aos casos mais populares, mas a desgraça é bem maior. É o velho “Nada contra, tenho até um amigo que é.” — posso ter amigos de uma classe, cor, gênero; tolero-os, afinal são meus amigos, mas já o resto…
Já li de tudo pelos comments e posts deste mundo virtual. Preconceito contra gays, lésbicas, negros, nordestinos, isso já é quase coisa fora de moda. A tendência é a “opinião” contra gente acima do peso, contra evangélicos, profissionais de determinada classe (vai dizer que aquela brincadeira de trocador ou hipster não é preconceito?), contra um estilo (principalmente contra os hipsters), até contra rede social (Orkut sinônimo de pobreza, era o nome da página). E a mais nova é a “opinião” contra gente que tira foto com tablet. Parece bobagem, e seria se não houvessem páginas, grupos, fóruns, com gente educada e elegante disposta a pregar o que os outros devem ou não devem fazer com a tecnologia nossa de cada dia. Vivemos na era do preconceito por seguimentos, personalizado.
Ok, muitos vão dizer que já é pegar pesado demais achar que tudo é preconceito, que não existe mais espaço pro humor. Mas é humor quando cria limites entre você e o outro? É engraçado quanto separa os normais dos anormais, quando estabelece o que é bom tanto pra você quanto pro outro? Acredite, judeus, negros, mulheres, também foram particularizados e alvos desse tipo de humor antes de irem pros fornos, pros troncos e para as fogueiras. Era engraçado. Acredito que a brincadeira de verdade sempre leve em conta a diversão de ambas as partes.
Dizer que nunca me dirigi a uma pessoa / grupo de maneira preconceituosa seria hipocrisia. O preconceito está sempre relacionado a diferença e se essa diferença me incomodava antes em silêncio, hoje me deram a oportunidade de ir xingar muito no Twitter ou em outro canal qualquer. Como posso assistir a uma Parada Gay e ficar calado vendo centenas de homens e mulheres se beijando e não expressar minha indignada opinião? Se eu acho isso errado, não importa o motivo (pergunte a um homofóbico, racista, machista, etc, o motivo real de sua indignação e receberá uma resposta vaga e inconsistente), preciso expressar isso de qualquer jeito. A expressão da diferença oferece a desculpa para a expressão de ódio.
Na falta de motivos, manipulamos a realidade em favor da nossa visão deturpada. Pessoas saudáveis são magras, casais felizes são héteros, mulheres descentes não usam roupas provocantes, pessoas superiores são brancas… Dito assim parece óbvio que essas ideologias são cruéis, mesmo o mais preconceituoso dos seres admite que essas ideias são erradas. Mas mesmo assim elas vingam, proliferam, criam grupos e se misturam com o nosso modo de viver e expressar.
Se eu não gosto de sorvete de morango mas o João gosta, diz a todo mundo que gosta, usa uma camiseta com um desenho escrito I love sorvete de morango, posta foto chupando sorvete de morango, logo não gostarei de João. João perde o status de pessoa livre pra chupar o sorvete que quiser e se torna o representante de algo que não gosto, não aprovo. E se não sei ao certo porque não gosto de sorvete de morango, também não saberei porque detesto tanto o João, só sei que o detesto. E se João tem liberdade pra dizer que gosta de sorvete de morango, porque não tenho eu o mesmo direito de dizer que odeio esse tipo de sorvete? Porque não posso me juntar num grupo de odiadores de sorvete de morango e esfolar o João? Essa tal liberdade da internet colocou em pratos limpos a sujeira que mantínhamos debaixo dos panos.
Ficou célebre o caso recente de um advogado que cuspiu nas redes sociais (leiam Facebook) que o nordeste era a culpa do atraso do Brasil. Se não gosto, generalizo, ridicularizo, faço um post bem humorado pra todo mundo achar que é tudo brincadeira,desabafo, humor politicamente incorreto, liberdade de expressão. É tudo engraçado, menos pra quem é o alvo da piada.




A questão é: a liberdade de expressão esbarra na fronteira da ofensa. Se a sua liberdade poda a do outro, se a sua opinião corrobora um pensamento racista, machista, homofóbico, guarde-a para você naquela caixinha imunda feita dos pensamentos e sentimentos recalcados. Vai haver sempre gente de bem disposta a policiar esse tipo de ação, como também acontecerá desta mensagem encontrar a resposta de outros idiotas.

Nem preciso dizer que psicologicamente projetamos nos outros as merdas que guardamos dentro de nós. Carl Gustav Jung criou um conceito assustador para isso, chamado A Sombra. Quanto mais seguros estamos de nossas convicções, quanto mais acreditamos que a nossa verdade é absoluta, maior será nossa sombra sobre os outros e mais nociva e grotesca ela será. Seja o holocausto, produto da sombra de um governo que acreditava fazer a coisa certa, seja aquela indireta maldosa que mandamos ao “Paraíba”, ao “Gordo”, ao “Viadinho”; é tudo fruto da mesma latrina.
O preconceito tem muitas raízes, algumas jamais encontradas, emaranhadas dentro de nós. Curiosamente, aquilo que não aprovamos no jeito de ser do outro, sempre esbarra em nosso caminho, como uma mosca insistente.A diferença incômoda diz muito sobre nossas fraquezas. Quem não nos agrada sempre tem mais a nos ensinar do que aqueles que nos apetecem.
O ser humano é assim. Sempre vai ser. Quando alguém pisar em nosso calo vamos usar contra ele as velhas armas de sempre. “Tinha que ser preto”, “Tinha que ser viado”, “Tinha que ser mulher”. Mesmo quando faltar motivos vamos usar aquela velha máxima de que todo mundo fala mal de todo mundo, e certamente alguém estará falando mal de mim. Se o inferno são os outros, o barqueiro que leva as almas até os círculos mais profundos do Hades será a internet.

0 comentários: