quarta-feira, 26 de março de 2014

O absurdo: Mulher que matou seu estuprador em legítima defesa pode ser condenada e presa

O absurdo: Mulher que matou seu estuprador em legítima defesa pode ser condenada e presa

Yakiri Rubio matou seu estuprador em legítima defesa - agora ela pode acabar na cadeia

Yakiri atrás das grades. Todas as fotos por Hans-Máximo Musielik.
Imagine que você é uma mulher de 20 e poucos anos andando pelas ruas à noite para encontrar uma amiga ou namorada. Dois homens numa moto abordam você e dizem: “Sobe aí, garota. A gente te dá uma carona”. Você manda eles irem se catar, mas eles te forçam a subir na moto. Momentos depois, você está num hotel. Com facas apontadas para suas costas, eles levam você para o quarto deles. Lá, eles te batem, te cortam e um deles te estupra. Quando ele está prestes a te esfaquear, você consegue pegar a faca e rasgar a garganta dele.
Horas depois, é você quem está sendo acusada de homicídio.
Foi isso que aconteceu no dia 9 de dezembro de 2013 com Yakiri Rubí Rubio Aupart, uma garota da Cidade do México que estava presa até recentemente no Centro Feminino de Readaptação Social de Tepepan, localizado no sul da cidade. Ela passou dois meses lá, respondendo à acusação de “homicídio qualificado”.
No final da semana passada, Yakiri Rubio foi libertada. Na segunda-feira daquela semana, na Suprema Corte da Cidade do México, sua acusação foi substituída de homicídio qualificado para excesso de legítima defesa. Ela foi libertada mediante fiança de US$30.000, uma soma 10 vezes maior do que seu advogado esperava depois que sua acusação foi reduzida.
Mas Yakiri ainda enfrenta problemas legais – agora, ela será julgada por “excesso de legítima defesa”. Se considerada culpada, ela poderá pegar até 10 anos de prisão.
Marina Beltrán, mãe de Yakiri, fala com o advogado em sua casa, minutos antes de partir para a Penitenciária Feminina de Santa Marta para o julgamento da filha.
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O que aconteceu exatamente na noite de 9 de dezembro de 2013? Vale a pena explorar isso em detalhes, porque o caso de Yakiri revelou uma série de ardis 22, irregularidades e abusos cometidos pelas autoridades da Cidade do México, dificuldades enfrentadas por muitas vítimas de violência sexual. A história dela é relevante para qualquer mulher que é estuprada e decide contra-atacar.
Quando comecei a ler sobre o caso, tive calafrios. Na época, eu trabalhava na região chamada Obrera (trabalhadora) da Cidade do México e costumava percorrer as mesmas ruas que Yakiri ao voltar do trabalho. Sou uma mulher jovem que precisa andar por essas ruas sozinha. Isso podia ter acontecido comigo – ou com você.
De acordo com Yakiri e seu advogado, ela saiu da estação de metrô Doctores às 19h e caminhava pela rua Dr. Liceaga para encontrar Rosa Gabriela Sánchez Vásquez, quem Yakiri namorava há sete meses. Dois homens a abordaram e tentaram fazê-la subir em sua moto. Quando ela os ignorou, um dos homens desceu da moto e a forçou a subir. O piloto e o outro homem a levaram alguns quarteirões à frente, até o Hotel Alcázar, localizado entre o Departamento de Justiça da Cidade do México e a Arena México.
Yakiri disse que não conseguiu escapar porque estava sendo levada à força e que ficou assustada porque o recepcionista do hotel, apesar de ver que ela estava sendo levada contra a vontade, não os impediu. Então, aconteceu o estupro e a luta com facas. De acordo com Yakiri, ela conseguiu pegar a faca de seu agressor e cortar a garganta dele. Ele fugiu correndo, sangrando. De acordo com a família do agressor, Miguel Angel Ramírez Anaya chegou em casa e morreu na frente dos parentes, alguns metros de distância da entrada do Gabinete da Procuradoria.
Yakiri saiu do quarto do hotel seminua, procurando ajuda. Ela disse que nenhum empregado do hotel quis ajudá-la. Ela entrou numa sorveteria, onde os empregados lhe deram água e guardanapos para se limpar. Depois, ela encontrou dois policiais e explicou o que tinha acontecido. Eles a levaram até o Gabinete da Procuradoria, onde ela fez a queixa do estupro. Enquanto ela esperava, Luis Omar Ramírez Anaya chegou, acusando-a de ter assassinado seu irmão. Eles foram colocados na mesma sala. De acordo com a Comissão de Direitos Humanos da Cidade do México, esse procedimento é completamente ilegal, porque a vítima de violência sexual “deve sempre ser mantida numa área de espera separada, para evitar qualquer contato com seu agressor”.
Depois de 12 horas no Gabinete da Procuradoria, Yakiri descobriu que seria presa, acusada de homicídio.
E o que aconteceu com os homens? Miguel Angel Ramírez Anaya está morto e Luis Omar Ramírez está livre. Yakiri o acusou de sequestro e violência sexual, mas não há uma ordem de prisão em nome dele até o momento. O Departamento de Justiça da Cidade do México estaria supostamente investigando Luis Omar, mas, enquanto isso, ele pôde depor contra Yakiri.
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Os familiares de Yakiri são músicos de salsa e ativistas, e vivem no bairro de Tepito. Eles largaram seus empregos para se dedicar inteiramente a conseguir a liberdade a filha.
Eu encontrei com eles numa reunião do Comitê Cidadão pela Libertação de Yakiri, formado pela família após o estupro. Fui até lá como membro de um coletivo de arte, que tem apoiado a campanha com arte gráfica. Quando contei à família que era jornalista, que tinha muito interesse no caso e que sempre passava pelo bairro onde Yakiri foi atacada, eles me convidaram para conversar em seu apartamento humilde em Tepito.
Enquanto eles me contavam sobre a corrupção do sistema de justiça mexicano, Jose Luis Rubio, pai de Yakiri, me mostrou fotos de suas aventuras dançando e ensinando salsa. Depois de alguns copos de rum, eles me mostraram os passos da cumbia e só paramos porque o telefone tocou. A voz de Yaki (que é como a família de Yakiri a chama) surgiu do outro lado da linha. Ela ligava todos os dias para conversar com a família. Conversei com ela naquela noite e prometi visitá-la.
Uma semana depois, eu estava na frente da prisão de Tepepan com mais 13 membros do Comitê Cidadão pela Libertação de Yakiri. Aquela era a primeira vez que ela recebia visitas de pessoas não pertencentes à família, já que os pais de Yakiri não permitiram a entrada da imprensa por razões de segurança.
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Quando Yakiri entrou no Gabinete da Procuradoria, ela não passou por um teste para confirmar o estupro. Eles também não permitiram que ela ligasse para a família. Lucia Lagunes Huerta, diretora do CIMAC, uma agência de notícias feministas, me disse que a lei escrita e a implementada são coisas diferentes. “Há uma certa lógica no mundo de que as mulheres não importam e que somos nós que provocamos a violência que fazem contra nós”, disse Huerta.
Quando liguei para o escritório da Procuradoria do Distrito na Cidade do México, eles não quiseram comentar o caso. Mas Rodolfo Ríos Garza, membro da Procuradoria do Distrito, disse numa conferência de imprensa: “Temos testemunhos anteriores na investigação em que ela entra no hotel por vontade própria com alguém e, portanto, não há evidência de estupro”.
O juiz que a sentenciou à prisão, Santiago Avila Negron, foi acusado de corrupção e assédio sexual em 2004.
No primeiro dia depois do estupro, a Procuradoria se concentrou na possibilidade de Yakiri conhecer seus agressores e que um deles fosse seu namorado. Por acaso, ela tinha algumas cartas românticas de um amigo com o mesmo primeiro nome do agressor morto. Essa foi a base para a Procuradoria estabelecer um relacionamento falso entre Yakiri e Miguel Angel Ramírez Anaya. Miguel Angel Camacho Campos, o amigo de Yakiri, admitiu ter escrito as cartas quando estava apaixonado por ela e se dispôs a fazer um exame de caligrafia para comprovar isso.
A Procuradoria recusou a oferta. Se ela conhecia Miguel Angel ou se ele fosse seu namorado, as autoridades tentariam descartar a possibilidade de estupro. Até hoje, eles não permitiram que Gaby, a namorada de Yakiri, testemunhasse, o que poderia ajudar a esclarecer que o agressor não era amante dela, de acordo com o Comitê de Defesa. Nem o testemunho de Jose Edgar Vásquez Medina, tio do falecido, foi considerado no tribunal. Ele disse que o sobrinho era solteiro e que ele vivia com a família.
Em sua bolsa, Yakiri carregava um estilete e uma faca para vegetais que, segundo a Procuradoria, são as armas usadas por ela para matar Miguel Angel. Yakiri disse que essas eram as ferramentas que ela usava no trabalho para abrir caixas. O Hotel Alcázar fica em frente ao Instituto de Ciência Forense da Cidade do México, mas o policial encarregado de investigar a cena do crime não seguiu os protocolos e a acusação não tem um especialista para analisar a arma, disse o advogado de Yakiri.
No México, estupro pelo marido ou companheiro não era um crime reconhecido até o ano 2000. Talvez por isso, não seja uma surpresa que o governo e a imprensa quisessem descartar a possibilidade do estupro caso Yakiri conhecesse seus agressores ou mesmo se tivesse entrado no hotel por vontade própria.
A Comissão de Direitos Humanos da Cidade do México liberou um amicus curiae, juntamente com o comitê de Yakiri, denunciando as irregularidades do caso.
“A Procuradoria fez uma construção histórica dos fatos baseada em visões parciais ou patriarcais, que visava minimizar o testemunho de Yakiri como vítima de violência sexual”, escreveu a comissão. “Isso foi usado como base para tratar [Yakiri] como possível culpada, não como possível vítima.”
Jose Luis Rubio, o pai de Yakiri, fala pelo celular no dia do julgamento em frente à Prisão Feminina de Santa Marta.
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Em frente à cadeia fica uma loja de aluguel de roupas para os visitantes. Como em muitas prisões do país, para acessar a cela de Yakiri – onde ela foi mantida nos últimos dois meses – os visitantes não podem entrar usando azul, preto ou bege, as cores dos uniformes dos guardas. Algumas garotas que pretendiam entrar na prisão estavam usando azul, então tiveram que alugar saias vermelhas na loja.
Para entrar na prisão, tivemos que dar nossos nomes ao comitê uma semana antes da visita. Um guarda nos chamou pelo nome e, quando mostramos nossas identidades, eles permitiram que passássemos para o segundo nível de segurança, onde fomos revistados à procura de celulares, câmeras, gravadores e armas. Depois, tivemos que preencher um formulário e fomos marcados com tinta fluorescente. Sem essa marca, você não pode sair da prisão.
Eles liberaram uma sala por meia hora, então formamos um círculo para receber a prisioneira. Mas quando Yakiri chegou, ela se sentou numa mesa, sem perceber que tínhamos reservado um lugar para ela.
Yakiri veio vestindo jeggings, sandálias com pedraria e um grande relógio dourado. Houve uma pausa de antecipação. Yakiri parecia surpresa em ver tantos visitantes. Fiquei pensando: “O que eu faria se isso acontecesse comigo?”. Eu não me imagino tão calma depois de sofrer um ataque desses, muito menos enfrentando uma sentença de dez anos de prisão.
Perguntamos como ela estava e ela disse que tudo estava melhor desde que foi transferida da prisão de Santa Marta Acatitla. Em Santa Marta, ela não conseguia comer e passava o tempo todo chorando. Ela sofreu muita violência enquanto estava lá. Quando estávamos saindo da prisão, perguntei à família de Yakiri o que tinha acontecido em Santa Marta. Eles acham que Yakiri foi “recomendada” pela família dos irmãos que a atacaram, o que significa que ela foi marcada pela máfia para ser assediada e para que tornassem a vida dela extremamente difícil na cadeia.
Da visão limitada que tive da prisão, Tepepan me pareceu mais ou menos tranquila. Não vimos nenhuma outra presidiária. A sala em que ficamos tinha uma toalha de mesa roxa.
Ativistas observam pela janela enquanto Yakiri fala ao júri em seu julgamento.
Yakiri contou como sua provação a mudou. “Antes, eu pensava de modo simples: só há uma vida e você tem que vivê-la”. Ela costumava trabalhar com sua família, vendendo mochilas, e não pensava muito no futuro. “Agora, tenho plena consciência do que pode acontecer”, ela disse. “Sei que ficar aqui requer força e coragem.”
Yakiri disse que superou a depressão porque “tenho que ser forte por minha família, que continua lutando por mim”. Ela sorriu ao falar sobre as centenas de cartas de apoio que recebeu no Natal. Mas muitas das cartas eram de uma alegria dúbia – muitas foram escritas por garotas que tinham passado por situações similares.
Quando finalmente chegou minha vez de falar, perguntei se a opinião dela sobre a justiça tinha mudado. Ela respondeu: “Antes, eu confiava na polícia; achava que ela ia me ajudar. Mas quando precisei, a polícia não me ajudou. Quando estive na Procuradoria, eles só mentiram para mim. Eles me disseram que logo eu poderia sair, mas nunca pude. Não acho mais que a justiça é útil. Se houvesse mesmo justiça”, ela disse, “as pessoas que estão lá fora estariam aqui dentro”.
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