sexta-feira, 11 de abril de 2014

Nem tudo é machismo. Mas muita coisa ainda é.

Nem tudo é machismo. Mas muita coisa ainda é.

 por  - Imaginar Para Revolucionar

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O CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) produziu diversas peças publicitárias (http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/conar-mostra-males-de-palhaco-e-do-arroz-separado-do-feijao) com o intuito de questionar o excesso de algumas reclamações que lhes são feitas.  O objetivo, ao que parece, são dois: 1) mostrar que há um órgão que regula a propaganda; e 2) que existem profissionais aptos a fazerem essa análise, vide o fim dessas peças: “confie em quem entende”.
Para melhor ilustrar seus sentimentos, o Conar utiliza-se do “humor” para fazer referência ao exagero nas reclamações de grupos específicos. Numa dessas peças “hilárias”, um casal se encontra em um restaurante prestes a comer uma feijoada. Antes de iniciarem, porém, chamam o garçom. Ao chegar, o atendente é indagado pelo homem se a separação entre o feijão e o arroz é devido aos sentimentos racistas do restaurante. A mulher, por sua vez, reclama pelo fato de a couve ser o único alimento “feminino” na mesa. Não satisfeita, reclama também do paio, devido à “evidente conotação sexual” do alimento “fálico”. A propaganda segue para dizer que o Conar recebe diversas reclamações por dia. Algumas justas e outras, nem tanto. Tudo isso para fazerem seu apelo final: confiem em quem entende, confiem no Conar.
É fato que existe exagero nas reclamações dos mais diversos lados da sociedade. Em vários momentos, nossas visões estão tão embriagadas de um sentimento específico que somos incapazes de enxergar a situação de modo mais amplo, mais justo. É preciso entender, pois, que nem sempre nosso ponto de vista é o de todos. Que, aliás, nem tudo que enxergamos está ali daquela exata forma, daquela exata maneira. Mas é partindo dessa mesma compreensão que se torna ainda mais evidente que as reclamações dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos violentados e dos oprimidos são relevantes. Porque são vozes excluídas. Vozes, aliás, tratadas como se fossem do “excesso”, do “surreal”, de uma vontade de ver aquilo que não existe.
Percebam que o CONAR, de forma bastante inteligente, utiliza do exagero para nos chamar a atenção para a necessidade de relativizarmos algumas coisas. Nem sempre o paio tem conotação sexual. Nem sempre a cor de um alimento significa algo tão bizarro quanto o racismo. É verdade. Nem sempre. A primeira premissa é corretíssima. Mas ela esquece algumas coisas. Por exemplo, a mulher é tratada como objeto em comerciais de cerveja. Sempre. Porque se pressupõe que quem bebe cerveja é o homem. Porque se pressupõe que uma mulher com medidas x e y apetece o consumidor (masculino). Porque se pressupõe que a mulher, assim como a cerveja, faz parte do jogo da diversão masculina. Assim como a cerveja, a mulher está ali para ser consumida. A mulher combina com cerveja da mesma forma que uma carne vai bem com um vinho.
A utilização do exemplo exagerado contribui para o senso comum de que as reclamações feministas sobre esses comerciais são fruto de um exagero. Que não há nada de anormal num comercial que apenas retrata o que de fato acontece: homes gostam de mulher bonitas e de cerveja. Isso acaba sendo irresponsável e, querendo ou não, beneficiando um lado da balança. Um lado que sempre ditou as regras e continua ditando.
Segundo dados do Fórum Econômico Mundial (http://exame.abril.com.br/economia/noticias/educada-brasileira-nao-tem-espaco-no-mercado-de-trabalho)  o Brasil está na 117ª posição – de um total de 136 países – no quesito de igualdade salarial entre homens e mulheres. É dizer: no Brasil, além de haver nítida desigualdade material entre homens e mulheres (pra dizer o mínimo), é normal que o mercado econômico acabe se voltando quase que completamente à mente masculina. Vejam, até quando existem comerciais para a “mulher-consumidora”, eles sempre ressaltam os atributos que ela, a mulher-objeto, possui para atrair o homem. Óbvio. Na cabeça de alguém com dados, o mais provável é que uma mulher compre apenas o que seu “macho-provedor” permita.  Num cenário desses, apontar o dedo para quem reclama é nitidamente uma forma de enviesar o debate. E não de nivelá-lo.
O CONAR acaba ilustrando, magistralmente, algo que o sociólogo Pierre Bourdieu nos ensina em 150 páginas sobre a dominação masculina. O CONAR precisou de 30 segundos.  O que o sociólogo e o CONAR nos mostram é como nossa sociedade utiliza de dualidades que não guardam nenhuma relação com o que se busca afirmar para justifica-las. Isto é, utiliza-se a diferença de cor em alimentos para, consciente ou inconscientemente, dizer que a diferença de cor dos indivíduos é tão banal quanto essa diferença entre arroz e feijão. Banaliza-se a diferença entre gêneros como se fosse um detalhe de regra gramatical. Banaliza-se a luta feminista como se ela fosse encampada por loucas, chatas ou encrenqueiras (qualquer semelhança com o esterótipo de toda mulher que tem personalidade forte na sua vida não é casual). Tudo isso utilizando-se da diferença entre “a” couve e “o” feijão, ou “o” arroz.
Pode parecer exagero, mas é super comum que utilizemos de situações da “natureza” para justificar nossos atos a favor ou contra um determinado ato. Assim como fazíamos com os negros antigamente (dizendo que bastava ir na Africa para percebermos sua verdadeira natureza inferior) hoje ainda fazemos o mesmo com mulheres, com homossexuais, com nordestinos, e ainda, depois de tudo, com os negros. No caso específico da mulher, basta fazer um exercício simples. Que o próprio Bourdieu utiliza em seu livro. Ele pergunta: em nossa sociedade o que é melhor? Ser forte ou ser fraco? Numa sociedade em que a dualidade é intrínseca à forma de conhecimento, o lado positivo e o negativo são bem delimitados. Um lado é mais forte, outro é mais fraco. E isso é dado como algo feito pela natureza. A natureza fez o homem mais forte e a mulher mais fraca. Logo, ela é fraca, e o homem é forte. Além de sabermos que esse discurso não é verídico (é sério, isso não é verdade), muitas são as propagandas que têm por base essa visão de mundo. Sem nos mostrar, sem se escancarar. São as propagandas da Dove e do Axe, que se colocam como “sensível” para a “frágil e sensual mulher” e como “bruto e forte” para o “poderoso, suado e cabelo-na-axila homem”. Quem sente mais na pele essa objetificação, essa pré-determinação, essa naturalização do papel na sociedade? Certamente não é o CONAR.
Como todo órgão de regulamentação, é importante que ele se entenda como um representante da sociedade. Como instituto. Como instituição. E, como tal, não arrogue para si todo o conhecimento do mundo. O CONAR deve se entender como aquilo que de fato é: uma das muitas estruturas capazes de melhor agregar e atingir as finalidades sociais. Nesse sentido, o diálogo com movimentos sociais (que não são apenas baderneiros, acreditem) não pode ser visto como uma atitude benevolente, mas sim como uma necessidade para o entendimento do todo. Justamente pela relativização que o CONAR exige em sua propaganda. Afinal, jamais veremos o mundo de forma igual se estivermos em situações diferentes.
Foi Michel Foucault, inclusive, quem destrinchou a “verdade” enquanto um discurso produzido. Sendo produzido, ele representa visões de mundo. Sendo aceito enquanto “o real”, enquanto “o verdadeiro”, esse discurso maneja e expele poder. A forma como se constrói a verdade, portanto, não é mera perfumaria. Envolve toda a perspectiva de representatividade e da importância de uma pergunta bastante básica e nada exagerada: a serviço de que(m)?
Ou vocês querem nos convencer que o racismo não é intrínseco à nossa sociedade? Que é super por acaso que a grande maioria dos presos é de uma cor específica de pele. Que é super por acaso que temos tão poucos ministros negros na história do Supremo Tribunal Federal que chamamos Joaquim Barbosa em nossas mesas de bar de “o negão”. Veja, não é por acaso. O racismo existe. Ele permeia nosso modo de pensar. Porque racismo não é atributo específico de ninguém. É uma estrutura social que nos influencia, que cria conceitos prévios e inquestionáveis, que move muitas decisões. Influencia brancos, influencia pardos, influencia negros. Nós temos que avançar. Sair do discurso da culpa e passar para outro. O das possíveis soluções. Uma delas certamente é dar mais voz aos excluídos. Se abrir mais à possibilidade de que, talvez, só talvez, nossa presunção do que é correto não o é. De que talvez nosso ponto de vista esteja estruturado e ancorado numa visão exclusivista.
E falo tudo isso como uma pessoa branca, heterossexual e masculina. Com todos os benefícios que isso implica. Não sou uma mulher negra e lésbica, ou outras com bastante opinião (aquelas “feministas raivosas” que muitos ainda chamam carinhosamente de feminazi). Sou beneficiado por todo esse sistema e é justamente por isso que me solidarizo com o CONAR. É normal, e totalmente compreensível, que eles se incomodem com tanta reclamação. O senso comum é machista e as reclamações acabam parecendo um tormento infindável e sem sentido. Principalmente para quem tem certeza de que está certo. Que sabe. O que nos falta, muitas vezes, é a sensibilidade para reconhecer os momentos em que nossos ganhos e nossos avanços foram em detrimento de uma melhor e ampla justiça.
Daí a importância de escutar e se abrir. Não é chatice. É necessidade. Tratar e taxar os movimentos negro, feminista, lgbt e todo o resto como pessoas sem razoabilidade acaba sendo irresponsável. Afinal, ainda que existam exageros, é completamente normal e compreensível, eu diria, que pessoas que convivem em uma sociedade na qual a sua sub-utilização, a sua subjugação e a sua inferioridade são naturalizadas (como se pré-definida e eterna) sintam a necessidade de gritar um pouco mais alto. Quantas vezes você assistiu a um filme em que algum personagem era tratado injustamente? Quantas vezes se agoniou com a benevolência das vítimas? Com o fato delas serem “boazinhas” demais? Imagine, agora, viver isso constantemente. Na pele. A vida toda. Uma hora você grita. É normal.
Da mesma forma que é normal uma mulher sentir com mais frequência o quanto nós todos somos machistas. Não porque somos ruins ou “pessoas do mal”, mas porque fomos ensinados assim por nossos pais, por nossas escolas e também (veja só!) pelas  propagandas e programas de tv. Neles e nelas, é bastante comum a figura da mulher como algo que deve ser conquistado. Da mesma forma que se conquista uma medalha. Medalha cuja principal função é transar com o personagem hetero e principal.  Medalha cujos melhores atributos são seus peitos, sua bunda e seu rosto. Medalha que quando fala demais é chata. Que quando não faz tudo que o homem quer não é interessante. Que gosta mesmo é de dinheiro (afinal, ela é incapaz de adquiri-lo por si só). Que só ganha dinheiro através do sexo ou seus atributos sexuais. Que, quando inteligente, é um porre. E assim vai. Isso está nas propagandas, nos filmes e em quase quase todos os programas que assistimos na TV.
Então, sim, é verdade que nem tudo é machismo. Mas tem muita coisa que é. E, mesmo assim, passa pelo crivo de “quem conhece” e de “quem sabe”.
Acho que o CONAR, assim como todos os órgãos de regulação, beneficiariam-se da mesma humildade que eles pregam aos outros em suas peças publicitárias. Deveriam confiar nos outros. Confiar nas feministas. Nos Negros. Nas Negras. Nos Gays. Nas Lésbicas. Nos violentados. Nas Violentadas.
Confiar em quem sabe do que tá falando. Confiar em quem entende.

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