Ano Zero
Existir como mulher negra é um duplo
exercício de luta pela cidadania e plenitude de direitos. Deixar seu cabelo pro
alto, no lugar onde você decidiu que ele deve estar, é uma afronta.
Há um ano
e seis meses, resolvi recomeçar a vida. Balzaquiana, decidi cortar
todo o cabelo e me conhecer e reconhecer como mulher negra. Foi resultado de
longos estudos sobre identidade, história, negritude. Seria um gran
finale de aceitação.
Foram
meses lendo sobre textura, tratamentos, cronogramas capilares etc. Era um mundo
que eu não fazia ideia de que existia. Primeiro entrave: como escolher os
tratamentos/produtos adequados ao meu cabelo se eu não conhecia meu cabelo? Nas
leituras, descobri que existem cabelos de 2A até 4C. Mas qual era o meu tipo? Eu não
fazia ideia. Eu precisava saber qual era pra saber como criar meu cronograma
capilar e aprender a hidratar, nutrir e reconstruir a massa do cabelo para
mantê-lo saudável. E aí, diante da minha decisão, ouvi duas perguntas: “Isso é
caro? Vai dar mais trabalho?” Oras! Caras e trabalhosas eram as escovas
progressivas para alisar os cabelos!
Alisei os
cabelos pela primeira vez – ao que me lembro – lá pelos 8 ou 9 anos, com a
então famosa e maldita “touca de gesso”. Lembro de ter me sentido absolutamente
ridícula em ficar com cabeça “engessada” por mais de uma hora. Era uma coisa
fedida, que deixou meu couro cabeludo vermelho e sensível durante uns dias.
Desde então, a cada três meses, lá estava eu de volta, paradomar aqueles
insistentes cabelos que me tiravam o sossego – e a beleza.
Beleza:
tá aí uma coisa que ~ nunca tive ~ . Sempre me achei muito feia. Magra, “cabelo
duro”, espinhas, “moreninha”. Tudo pra ser preterida. E assim foi por muito
tempo. Lembro com clareza de quando chegou a época da formatura da oitava série
e precisavam ser formados pares para a cerimônia (não vou entrar no mérito
dessa convenção social machista agora). Lembro que eu tinha um grupo de amigos,
e nenhum deles quis entrar comigo na tal cerimônia. Ouvi um deles falando:
“prefiro a Eduarda. Mais bonita”. Eduarda, com seus longuíssimos cabelos lisos
e branquinha, era mais bonita. Claro. Hoje entendo a beleza de Eduarda. E a
minha. Lembro ainda uma outra vez em que eu estava varrendo a varanda de casa e
uma pessoa, procurando por minha mãe – que é branca e viúva de um negro –
perguntou se “a dona da casa estava”. Cada qual no seu lugar, certo?
Errado.
ANTES “MORENINHA”. AGORA, NEGRA E…. GAY?
Pixaim,
palha de aço, Bombril, vassoura, leoa, sarará, cabelo duro, cabelo ruim,
piaçava. Ouvi
isso a vida inteira, mesmo depois de alisar o cabelo, já que ele, mesmo
alisado, não tinha a aparência adequada, de naturalmente liso. Mas, aleluia, um
dia chegou o dia do Big Chop (“BC” para os íntimos), a
hora de cortar tudo. Eu estava tão ansiosa que não aguentaria passar pela “transição“, forma como muitas meninas
conseguem manter o cabelo alisado até ter o tamanho suficiente de cabelo
natural pra não precisar cortar Joãozinho.
Foto: Anderson França
Pois eu cortei
Joãozinho. E ganhei mais um rótulo imediatamente. Passei a receber olhares,
questionamentos sobre minha sexualidade e até vivenciei a homofobia, quando um
homem bradou: “isso é uma pouca vergonha! É culpa do Lula e do politicamente
correto a gente ter que ver isso!”. Eu estava tomando um suco com uma amiga –
também de cabelos curtos – numa lanchonete perto de casa. Peguei uma cadeira
para “educa-lo”, mas fui contida. Melhor assim.
ACEITAÇÃO: UM ATO POLÍTICO.
“Será que
você consegue um namorado agora, com esse cabelo?” “Será que consegue um
emprego?” “Sua criança vai sofrer bullying na escola?” Não vou
dizer que não pensei nestas coisas. Mas vou dizer que pensei mais nas
respostas. Eu gostaria de me relacionar com alguém que me avaliasse e me
desejasse de acordo com meu cabelo? Eu gostaria de trabalhar num lugar em que a
capacidade das pessoas fosse medida pelo cabelo? Eu matricularia minha criança
em uma escola que mandasse cortar o cabelo, como
um uniforme? Eu me submeteria ao racismo? Eu realmente quero me retirar destes
debates e me recolher ou quero lutar com as pessoas pela garantia de direitos
de todos e pela mudança desse cenário medíocre e criminoso?
As
respostas a essas perguntas são políticas. Somos seres políticos. Existir é um
ato político. Existir como mulher negra é um duplo exercício de luta pela
cidadania e plenitude de direitos. Deixar seu cabelo pro alto, no lugar onde
você decidiu que ele deve estar, é uma afronta. Uma afronta à “ordem natural
das coisas”, onde o negro tem seu lugar muito bem delineado – um lugar num
cantinho, mais ao lado, mais na cozinha, um segundo lugar. Uma afronta ao
Estado Brasileiro, que teve uma política oficial de branqueamento de seu povo,
focando na miscigenação e no estabelecimento de uma população morena. Negra
não. Esta coisa ruim tinha que ser apagada.
Foto: Fernando Oliveira
Aceitar-se
é uma afronta a um Estado cuja polícia federal exige que se prenda os cabelos para ter direito a tirar um
documento. Afronta a um Estado que mata majoritariamente negros. Afronta a um
Estado cujos cargos de chefia são ocupados em sua esmagadora maioria por homens brancos,
que ganham 36% mais que os homens negros e 47,8% mais que as mulheres negras. Eu nasci
pra afrontar esse Estado, pois nascer e viver sob esse Estado é uma afronta.
RACISMO SEM FIM.
Como
esperar que uma criança não reproduza o racismo ou se acostume a sofrê-lo se
ela não reconhece ao seu redor negros em posição que não seja subalterna? Como
isso é possível sem que sequer haja bonecas negras pra brincar, bonecas com
sua cor, seu cabelo, sua boca e nariz, sua identidade e que mostrem à criança
que ela é bela e merece ser copiada?
Como ser
negro pode ser algo bom, não depreciativo, se pessoas da sua cor sequer
aparecem no cinema, se não têm representatividade? Quantos negros protagonizam novelas que se passam no Leblon, são ricos,
patrões, tem casas bonitas na beira do mar (protagonistas de senzala, em
novelas de época não contam )?
Mulheres negras no cinema praticamente não existem, mesmo que nós
sejamos 52% da população feminina do país.
NÃO PASSARÃO!
Nós,
mulheres e homens negros, construímos este e outros países. Carregamos o Brasil
nas costas ainda hoje, mesmo ganhando bem menos pra isso e morrendo mais cedo e
em maior número. Mas aprendemos a resistir e, a cada dia, aprendemos a peitar
aqueles que acham que aqui não é nosso lugar. Nós vamos lutar para viver mais e
melhor e vamos ensinar nossos filhos que nosso cabelo, nosso nariz, nossa pele
são as características da liberdade e da resistência e que temos, sim, direito
a um lugar ao sol.
Cabral, o retrato da desinteligência nacional.
Nós,
mulheres negras, vamos continuar procriando, mesmo que governadores brancos nos chamem de “parideiras de
marginais”. Nós vamos afrontar este Estado e mostrar que nosso lugar
não é na cozinha.
(O título
do texto é uma alusão à música de Cabelo Pixaim, de Jorge Aragão.)
ESCRITO POR CECÍLIA
OLLIVEIRA
Jornalista e pesquisadora, com especialização em Criminalidade e
Segurança Pública pela UFMG, é coordenadora de comunicação do Law Enforcement
Against Prohibition – LEAP Brasil.
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