domingo, 10 de agosto de 2014

Sobre os exames ginecológicos nos concursos e as intervenções no corpo feminino

Sobre os exames ginecológicos nos concursos e as intervenções no corpo feminino



*Por Ana Cristina Pimentel
A realização de exame ginecológico foi exigido às candidatas que concorreram a vaga de Agente de Organização Escolar do concurso realizado pela Secretaria Educação do estado de São Paulo. Os exames não seriam critérios de exclusão da candidata, pois nestas situações “o candidato é retido simplesmente para regularizar sua situação documental”. As candidatas aprovadas que almejassem “tomar posse”, na prática, seriam obrigadas a realizar o exame.
Esta não foi a primeira vez que tal exigência é colocada em concursos públicos. Ao contrário, esta medida tem se tornado cada vez mais comum. Entidades (como a OAB-SP e a Defensoria Pública do Estado), movimentos e órgãos governamentais já se pronunciaram, caracterizando esta exigência enquanto discriminatória. Dar continuidade a este debate, posicionando-nos contrárias a esta medida é uma ação política central.
O argumento que defende a realização destes exames se respalda em uma prática já comum na medicina do trabalho que é a realização de exames médicos admissionais, que ocorrem tanto no setor público como no setor privado. A realização destes exames, no nosso entendimento, destina-se a proteção da trabalhadora/trabalhador. No entanto, percebe-se a normalização de uma lógica destes exames em benefício do empregador.
Apresento esta argumentação por considerar necessário um debate amplo sobre saúde da trabalhadora/trabalhador e a lógica na qual os exames admissionais estão inseridos. É necessário insistir que tais exames devem proteger aquelas e aqueles que cotidianamente colocam sua vida em risco nos diversos setores onde trabalham. Assim, os exames exigidos modificam de acordo com a categoria, assim como são exigidos periodicamente para que seja possível acompanhar a interferência do trabalho na vida destas pessoas.
Na lógica que prevalece hoje, a saúde das trabalhadoras e trabalhadores é potencialmente um risco para aquele que a emprega – deve-se sublinhar, risco econômico – logo, devem “provar” sua sanidade. É importante insistir que esta lógica inverte o sentido da realização destes exames, ao ter como objetivo proteger aquele que emprega.
O que ocorre especificamente com as mulheres é grave. Não apenas uma ação discriminatória, mas uma violência. Aqui, antes de entrar no debate específico, também cabe a ênfase em uma questão mais geral. Falarei apenas da colpocitologia, pois o Departamento de Perícias Médicas já sinalizou a retirada da colposcopia dos próximos concursos. De acordo com o órgão, as evidências científicas respaldam sua retirada.
É necessário situar este exame, descrevê-lo, pontuá-lo. A colpocitologia – ou exame de Papanicolau ou simplesmente “preventivo”, como habitualmente conhecemos – é realizado com a mulher na posição ginecológica, ou seja, deitada, joelhos dobrados, pernas afastadas. Na sequência, ocorre a introdução do espéculo na vagina (um instrumento que pode ser de metal ou plástico) para que ela – a vagina – permaneça aberta durante a realização do exame. Assim, introduz-se um instrumento para retirada do material do colo do útero e posterior análise.  Sempre afirma-se que este exame não é doloroso, o que não é necessariamente verdade. Ele é desconfortável e pode ser doloroso. É realmente um exame muito simples, como também é um exame invasivo, não necessariamente tranquilo e rotineiro, como habitualmente especula-se.
O Papanicolau – curiosamente é simplesmente chamado “preventivo”, na maioria das vezes – é um ritual que define a saúde ginecológica e, ao mesmo tempo, constitui-se enquanto a própria objetivação da feminilidade. Afinal, quanto mais acesso aos serviços de saúde, mais a experiência de ser mulher passa pelo exame ginecológico.
Hoje, é a melhor tecnologia de rastreamento do câncer de colo de útero (significa que outras mais interessantes podem surgir e, particularmente, espero ansiosamente que sejam produzidas!). O câncer de colo de útero é um grave problema de saúde pública, que pode ser prevenido e tratável, na maioria dos casos. O que almejo destacar é que o exame Papanicolau é um exame importante, a universalização do acesso a estes exames é uma medida esperada e importante para a saúde das mulheres.
No entanto, a realização deste exame não é necessária para além das recomendações, que variam de acordo com o perfil da mulher. A recomendação para o rastreamento deste câncer é a repetição do exame Papanicolau a cada três anos, após dois exames normais consecutivos realizados com um intervalo de um ano. Algumas mulheres em situações específicas são orientadas a realizarem anualmente.
Nada justifica a realização deste exame em situações não preconizadas para a prevenção do câncer do colo de útero. Este não é um exame que oferece resultado pontual, positivo ou negativo, assim, quais seriam as margens lesivas aceitáveis para a admissão? Ao encontrar uma lesão pre-cancerígena a mulher não seria contratada?  Ao encontrar uma lesão cancerígena, tratável, a mulher não seria empregada? Ou, como o Departamento de Perícia Médica quis insinuar, o exame seria apenas protocolar? Neste caso, por que submeter a mulher a um exame sem necessidade para a sua saúde?
Arte: Dana Leggett.
Arte: Dana Leggett.
A interrogação que se coloca é de ordem política e, assim deve ser colocado, neste entendimento, que não existem justificativas para a realização destes exames. Ainda é importante destacar que a principal estratégia de prevenção do câncer do colo de útero é o uso de preservativos durante as relações sexuais, questão pouco divulgada e debatida. O que ocorre é uma nítida naturalização de intervenções (que, neste caso, poderia ser denominada invasão) sobre o corpo feminino.
*Ana Cristina Pimentel é doutoranda em saúde coletiva e militante da Marcha Mundial das Mulheres no Rio de Janeiro.

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