quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Maioridade penal: não passarão! Nem aos 45 do segundo tempo… Never!

Maioridade penal: não passarão! Nem aos 45 do segundo tempo… Never!

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Por Salah. H. Khaled Jr. - Justificando


Eu poderia ficar calado. E talvez fosse mais prudente. Mas como disse um grande amigo meu, caso você se sinta incomodado por eu pensar o que penso e falar o que falo, desfaça nossa amizade no Facebook. Quero amigos, não quero clones que pensam exatamente a mesma coisa que eu. Quem quer clones deve procurar um psicólogo para resolver seu complexo de Narciso e sua falta de aptidão para a convivência com a diferença do outro.
Estamos na semana decisiva e não posso negar minha condição de professor e pesquisador na área de ciências criminais. Preciso exteriorizar minhas preocupações e o farei, mesmo que para isso eu tenha que me expor ao fundamentalismo radical de quem não aceita a diferença de opinião.
Penso que algum dia talvez o Brasil eleja um candidato comprometido com a redução da maioridade penal. Mas quero crer – ouso crer – que isso não acontecerá no próximo domingo. Não posso aceitar a ideia de que novamente iremos reafirmar a nossa vocação histórica para a destruição do outro, do diferente, do vulnerável.
Tristemente isso está codificado geneticamente na nossa identidade nacional: uma identidade inventada para reafirmar uma hierarquia social excludente.
Precisamos continuar avançando e, logo, não podemos compactuar com essa barbárie. Não posso crer que as pessoas não percebam que a combinação da redução da maioridade penal com presídios privados representa um combo fatal.
Considerando a inegável seletividade de nosso sistema penal, estaremos autorizando a criminalização massiva de jovens negros e pobres, que serão posteriormente adestrados e integrados a maquinarias privadas de produção, sem qualquer necessidade de respeito a direitos trabalhistas. Presídios privados geram uma demanda por presos: pessoas se transformam em objetos que podem ser consumidos no processo de produção do que não consomem, como se escravos fossem.
Tudo isso soa assustadoramente familiar para quem tem plena ciência da monstruosidade da nossa história.
Por outro lado, se retirarmos o presídio privado de cena, a proposta irá se mostrar ainda mais catastrófica: estaremos condenando parcela da nossa juventude ao holocausto nosso de cada dia e possibilitando que ela seja cooptada pelo que há de mais perigoso em nosso universo penitenciário. E de lá eles inevitavelmente sairão – tratados como bichos – mordendo. Eis aí a insanidade: é contraproducente mesmo para os “homens de bem” que vomitam o discurso de “direitos humanos para humanos direitos”, quem dirá para aqueles que são engajados na luta pela redução de danos e minimização de dor que o sistema penal inevitavelmente provoca.
Alguns dirão que estou exagerando. Afinal, a proposta contempla uma redução seletiva, apenas para crimes mais graves (ainda que não se saiba como um sistema assim possa funcionar: diferentes patamares etários de acordo com a gravidade da conduta? Sui generis, pra dizer o mínimo). Mas quem conhece o sistema penal sabe que esse será apenas o início: eventualmente a redução contemplará todos os crimes e a caixa de pandora não cessará mais de ceifar vidas. Não que isso seja de todo indesejável para os empresários morais que disseminam diariamente uma cultura de ódio através da criminologia midiática.
Parece claro que muitos não se contentariam com nada menos que o emprego industrial e sistematizado de mecanismos de extermínio dessa gente tida como perigosa e ameaçadora para o bem-estar social. E isso nós não podemos – não iremos – permitir.
Não pode ser esse o caminho a seguir. Estaremos conscientemente abrindo mão de mecanismos inovadores e saudáveis de tratamento de situações de conflito que envolvem adolescentes – como a justiça restaurativa, por exemplo – e autorizando o tratamento penal dessas situações. Estaremos abandonando o necessário investimento na educação básica e a implementação de políticas públicas para disputar o adolescente com o tráfico e entregando esses jovens – com quem o Estado falhou – ao controle penal e à exploração de sua mão de obra, que será deliciosamente barata. Sim amigos, o que se avizinha é reclusão por furto de boné: criminalização contínua e irrefreável da banalidade cotidiana, a gente se vê por aqui.
Por mais que se tenha reservas aos três governos anteriores – e eu tenho muitas – o fato é que ao longo de 12 anos, JAMAIS houve qualquer iniciativa do executivo para reduzir a maioridade penal. Mas conhecendo o histórico do nosso Congresso, sabemos que um governo que assuma essa pauta explicitamente conseguirá aprovar essa insanidade. E assumirá: afinal a medida é “popular” e trará dividendos políticos para os manipuladores do medo alheio.
Como é notório, não são poucos aqueles que empregam razões ardilosas e sustentam que a questão que envolve o patamar da maioridade penal não conforma cláusula pétrea. E aí restará apenas apostar no STF para barrar o avanço dessa torrente punitivista.
E essa é a pergunta que eu faço a todos os juristas (formados e em formação): você confia no Supremo para fazer a coisa certa? Eu não confio. E como não confio, simplesmente não estou disposto a correr esse risco.
Você está disposto a correr o risco de que isso aconteça? É uma pena, mas respeito sua posição, como espero que respeite a minha.
Por isso digo sim: nem aos 45 do segundo tempo… never!
Peço que me perdoem pela divagação. Como sempre digo, não tenho qualquer pretensão de dizer a “verdade” sobre as coisas. É apenas meu horizonte compreensivo e minha leitura político-criminal do jogo, que é inteiramente condizente com meu espírito de confronto com o poder punitivo. Estranho seria se eu dissesse o contrário. Ninguém é obrigado a concordar ou acatar minhas razões. O texto é um desabafo. Não é um artigo acadêmico, mas um chamado às armas para que nós não sejamos seduzidos pela falácia desse projeto. Os adolescentes representam parcela tão pequena da criminalidade violenta (veja aqui) que o argumento não é nada mais que justificação discursiva para uma barbárie sem precedentes, que não podemos permitir de modo algum.
Grande abraço e espero que a proposta vencedora seja a melhor para o país. Independentemente de nossas preferências, será o governo que viveremos nos próximos anos.
Até domingo e se Deus quiser, não dependeremos do Supremo. Não passarão!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor adjunto de Direito penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.  Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013.
 
Foto: Jornal GGN

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