quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Audiência pública discute estupros na Faculdade de Medicina da USP


Audiência pública discute violência na Faculdade de Medicina da USP

Elaine Patrícia Cruz - Agência Brasil
Audiência pública organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), discutiu hoje (11) as violações aos direitos humanos na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a comissão, entre as denúncias recebidas estão os trotes violentos aos estudantes que ingressam na faculdade, estupros, abusos sexuais, racismo e discriminação social.

Um relato corajoso foi feito por uma estudante da Faculdade de Medicina da USP que, embora tenha falado seu nome e mostrado o rosto durante a audiência, pediu anonimato aos repórteres. Ela narrou dois episódios em festas da faculdade, nos quais foi vítima de violência: em um deles, foi abusada por um integrante da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, uma entidade estudantil da USP; no outro, foi vítima de estupro. Ambos em 2011, quando entrou na faculdade.

A estudante disse ter sofrido muita pressão para não fazer denúncias, mas decidiu procurar uma delegacia e abriu inquérito policial. Foi então que ela descobriu que o estupro fora praticado por um funcionário terceirizado da USP, que ainda deu dinheiro para seguranças e dois alunos da faculdade para para facilitarem acesso ao crime e ficar impune. Depois de ter denunciado o crime, ela contou ter sido procurada por outras pessoas. Entre elas, um jovem que contou também ter sofrido abuso durante uma festa na USP, chamada Espumada.

Outra estudante da USP, que também pediu anonimato disse que sofreu abuso na festa da Cervejada, no ano passado. “Eu estava na festa e dois alunos da faculdade me abordaram e me convidaram para ir ao carro deles, que estava no estacionamento. Falei que não queria ir. Eles insistiram fortemente para eu ir. Eu não queria, mas na insistência acabei indo. O carro estava em um lugar deserto. Começaram a me beijar, a enfiar a mão dentro da minha calça. Um deles ficou muito bravo comigo, porque eu não queria. 
Mas nesse momento tinha um outro casal no estacionamento e a menina começou a gritar, me livrando daquela situação”, contou ela, acrescentando ao relato ter sofrida intensa perseguição e ameaças para não relatar o caso, “porque poderia prejudicar a carreira dos caras”.

“Foi instaurada uma comissão [na faculdade] formada por quatro pessoas: três homens e uma mulher. Tiveram acesso ao meu depoimento e ao depoimento de apenas um agressor, além do boletim de ocorrência. Foi feita apuração do caso, e o resultado dessa comissão é de que o abuso tinha sido consensual, e que o único problema foi o álcool. Me senti humilhada. Após mais de um ano, os caras continuam impunes e cruzo com eles quase todos os dias, e para mim é muito complicado cruzar com eles”, relatou ela durante a audiência.

A estudante Monica Mendes Gonçalves, da Faculdade de Saúde Pública da USP, revelou ter sido impedida de entrar na Faculdade de Medicina, onde iria se encontrar com alguns amigos, “porque sou negra”. O caso ocorreu em abril deste ano. “Dois seguranças disseram que eu não poderia entrar ali, porque eu não era aluna. Mostrei o crachá a eles e a resposta foi que eu não entraria, em hipótese nenhuma”, contou.
Depois, disseram que ela não poderia entrar, porque estava ocorrendo uma festa de estudantes do centro acadêmico, mas dando a volta no prédio, ela conseguiu apurar que a argumentação era mentirosa. Ela então voltou à entrada da faculdade e novamente tentou entrar no local. “O guarda da USP negociou comigo que eu só entraria escoltada por ele. Entrei acompanhada por ele [e vimos que não havia festa]. Foi aí que ele disse que eu era arrogante. 
Eu tinha a carteirinha que me foi solicitada [e apresentada aos seguranças] e amigos me contaram que somente eu fui barrada de entrar no prédio. Então, não havia outro motivo [para barrarem minha entrada] que não o fato de eu ser mulher e preta”, falou. Segundo ela, uma sindicância foi aberta na época para investigar o fato.

Os casos estão sendo investigados pelo Ministério Público de São Paulo. Presente à audiência, a promotora Paula de Figueiredo Silva, da Promotoria de Direitos Humanos, disse que já abriu inquérito civil para investigar as denúncias que recebeu sobre violências na Faculdade de Medicina da USP. “Há dois meses tomei conhecimento da situação da faculdade. Uma pessoa chegou lá. Foi um relato amplo, de uma realidade de violações constantes de direitos fundamentais das minorias. Na realidade, o que foi narrado para mim não foram violações pontuais, mas a existência de uma realidade de discriminação e exclusão das minorias, especialmente relacionada a mulheres e homossexuais”, disse ela.

A promotora disse também ter mandado ofício à diretoria da Faculdade de Medicina e requisitado a grade curricular para apurar se há matérias que tratem sobre direitos humanos. “Ela é essencial para todo profissional. E médico vai lidar diretamente com a vida, com a pessoa humana”, disse a promotora.

Segundo Ana Luísa Cunha, integrante do coletivo feminista Geni, que foi criado no ano passado na Faculdade de Medicina para receber e apoiar mulheres vítimas de violência, o problema não é pontual. “Essas violações, que estão sendo discutidas aqui, não partem de indivíduos maus, mas de uma cultura permissiva da faculdade. Os casos apresentados aqui não são isolados”, disse ela.

Segundo Ana Luísa, os casos que o coletivo vem recebendo como denúncias ocorrem tanto nas festas promovidas pela Associação Atlética quanto pelo Centro Acadêmico Oswaldo Cruz,  "perpassando por todas as instituições e ao longo de diversos anos. Ou seja: é um problema estrutural e não pontual da faculdade. São materializações da cultura machista e violenta”, enfatizou.
Ana Luísa disse que o coletivo tem recebido várias denúncias sobre violência, principalmente contra as mulheres, ocorridos dentro da faculdade. Inclusive de fatos que ocorreram há anos, e nem todos viram inquéritos, já que algumas das vítimas pretendem apenas relatar o ocorrido, sem desejo de seguir adiante na denúncia. Mas desde 2011, falou ela à Agência Brasil, o Geni recebeu pelo menos oito relatos de casos graves de violência, envolvendo estupro na faculdade, e ninguém foi punido pelos crimes.

Para o professor Antonio Ribeiro de Almeida Junior, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, que estuda os trotes em universidades desde 2001, os trotes são em geral violentos e, muitas vezes, são processos enraizados e históricos em algumas instituições. “São grupos de poder que usam o trote como processo de seleção para entrar no grupo - um mecanismo de exclusão, sem integrar ninguém". No seu entender, a cultura do trote é bárbara, pois precisa ser violento para exercer a função de selecionar se a pessoa afetada obedecerá ordens e ficará em silêncio, apesar das afrontas. "O trote é uma porta escancarada para o processo de corrupção que temos na sociedade”, disse ele.

Procurada pela Agência Brasil, a Faculdade de Medicina da USP informou que irá promover, no próximo dia 27, uma congregação extraordinária para tratar das ações propostas pela comissão. A reunião, no entanto, será fechada. “A Faculdade de Medicina da USP se coloca de forma antagônica à qualquer forma de violência e discriminação (com base em etnia, religião, orientação sexual, social) e tem se empenhado em aprimorar seus mecanismos de prevenção destes tipos de casos, apuração de denúncias e acolhimento das vítimas. A cultura da instituição é baseada na tolerância e respeito mútuos, valores que são passados a seus alunos”, ressalvou a instituição, por meio de nota.

A faculdade disse ainda ter criado uma comissão formada por docentes, alunos e funcionários com o objetivo de “propor ações, de caráter resolutivo quanto aos problemas relacionados às questões de violência, preconceito e de consumo de álcool e de drogas”, e informou ter aberto sindicância para apurar os casos de violência ocorridos em suas dependências. “Em caso de comprovação, a faculdade adotará as punições disciplinares, de acordo com o 
Código de Ética da USP”, diz a nota.

O deputado estadual Adriano Diogo, que preside a Comissão de Direitos Humanos da Alesp, disse ter sofrido pressão interna para não viabilizar a audiência. “Uma das coisas que mais me motivou, e até foi sugerido, é que esta audiência não fosse feita em troca da prorrogação do prazo da Comissão Estadual da Verdade [que também é presidida por ele, e que tenta prorrogar seus trabalhos de dezembro para março de 2015]”, falou ele, sem explicitar de onde ou de quem teria vindo a pressão.

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