Por Idelber Avelar
Aconteceram, no dia 09 de abril, na França, as primeiras prisões de mulheres por uso do véu islâmico. Não tendo me pronunciado na época da promulgação da lei, acredito que é o momento de tecer algumas considerações sobre ela.
Confesso que me espantou bastante a rapidez com que, na internet brasileira, várias pessoas de minha amizade e interlocução se pronunciaram em apoio à lei de Sarkozy, em alguns casos em menos de 24 horas depois de sua promulgação e, em sua totalidade, sem qualquer consideração do histórico recente de islamofobia na França, contexto que é o óbvio marco no qual se insere a lei. Nenhum dos artigos que li na internet brasileira em defesa da lei mencionava alguma escuta da opinião daquelas que são afetadas pela legislação, as mulheres muçulmanas.
Os argumentos em defesa da lei são previsíveis: as roupas também são uma forma de opressão, as mulheres islâmicas com frequência são obrigadas por pais e maridos a utilizar a burca ou o niqab, os véus são parte de uma lógica machista. Todos são argumentos verdadeiros. É claro que um sujeito moderno razoável não se oporia à intervenção legal contra homens que obriguem suas cônjuges ou filhas a utilizarem o véu (ou qualquer outra vestimenta, diga-se). O salto lógico que a defesa da lei não consegue efetuar com eficácia é como passamos disso ao apoio a uma penalização estatal às mulheres que escolhem vestir a burca ou o niqab.
O melhor intento que encontrei de realizar esse salto lógico foi o argumento de que, no caso do véu islâmico, não há escolha de verdade, posto que as mulheres são condicionadas pela lógica machista e seriam, portanto, vítimas da cultura que lhes impõe essa prática, não tendo elas escolha efetiva. Nenhum dos textos brasileiros mencionou tentativa de consulta às mulheres islâmicas acerca desse curioso pressuposto, o de que o livre arbítrio é exercido pelas mulheres que escolhem utilizar crucifixos, mas que aquelas que optam pelo niqab são vítimas de sua cultura. Nenhuma das defesas da lei de que tomei conhecimento parece ter suspeitado da contradição entre esse pressuposto e o fato de que a maioria das mulheres islâmicas não usa a burca. Algumas islâmicas são vítimas de sua cultura mas a maioria não o é? Dizer que o crucifixo não fere a integridade física da mulher como faz a burca não resolve o problema teórico: o conceito de livre arbítrio no Ocidente é inseparável de uma história etnocêntrica na qual as sociedades euroamericanas sistematicamente arrogaram para si a prerrogativa da racionalidade universal, reservando para africanas, orientais, ameríndias e árabes a condição de vítimas de uma cultura particular. Será que aqueles que repetidamente falam em nome da outra sem consultá-la também não são vítimas de sua cultura?
Tendo já algum tempo de engajamento com a causa palestina, sendo estudante ocasional da língua árabe e residente de um país onde a islamofobia chegou a níveis verdadeiramente assustadores, acredito poder dizer com alguma certeza que desfruto de um leque de amizades árabes e/ou muçulmanas mais amplo que a maioria das pessoas que se pronunciaram sobre a lei. Mesmo assim, achei que, neste caso, antes de opinar sobre o tema, valia a pena a consultar aquelas que são afetadas pela lei, ou seja, as mulheres muçulmanas ou mulheres de ascendência árabe residentes em regiões ou países onde o Islã tem presença importante. Trata-se de um preceito ético básico que tento, pelo menos, seguir de forma rigorosa: em matérias que envolvam racismo, ouvir com a maior atenção e humildade possíveis o que os negros têm a dizer sobre o assunto; acerca da homofobia, escutar gays e lésbicas antes de emitir opiniões peremptórias; sobre machismo, tentar ouvir suas vítimas reais, as mulheres. Isso não quer dizer, claro, que você não vá formar a sua própria opinião com independência. Mas falar de discriminação antes de ouvir o discriminado não costuma ser um bom caminho.
Entre a data da promulgação da lei de Sarkozy e as primeiras prisões, acredito ter entrevistado pelo menos cinquenta mulheres árabes e/ou muçulmanas, residentes de países tão distintos como a própria França, os EUA, Israel, os territórios ocupados da Palestina e as nações do Magreb. Entre as mulheres árabes consultadas, havia não só muçulmanas, mas também cristãs, agnósticas e ateias. Embora o grau de indignação contra a lei de Sarkozy seja variável entre elas, nem uma única defendeu a lei ou deixou de apontar nela uma motivação islamofóbica. Minha pesquisa amadora e precária não está desacompanhada. A Open Society Foundations, através de seu projeto “Em Casa na Europa”, acaba de publicar um relatóriobaseado em entrevistas com 32 mulheres francesas que usam a burca ou o niqab. Nenhuma delas afirmou ter sido obrigada a usá-los e algumas, inclusive, testemunharam que os utilizam apesar da pressão contrária de familiares. Caramba, será que o livre arbítrio de todas essas mulheres foi sequestrado por sua cultura?
Estimativas publicadas pelo jornal Le Monde apontam que menos de 2.000 mulheres em toda a França usam a cobertura completa do rosto, seja com a burca, seja com o niqab. Por motivos que suponho já óbvios para o leitor da Fórum, o impacto cultural e político da lei de Sarkozy se faz sentir, no entanto, em toda a população muçulmana da França, que anda em torno de 6 milhões de pessoas. Logo depois da entrada em vigor da lei, Kenza Drider, francesa e mãe de quatro filhos, saiu de casa, como disse o Guardian em reportagem sobre ela, disposta a cometer um crime. Usando sua burca em ato de desobediência civil, ela declarou: “continuarei vivendo a minha vida com o véu completo, como fiz ao longo dos últimos 12 anos, e nada nem ninguém vai me deter. Jamais imaginei que veria o dia em que a França, a minha França, país no qual nasci e que amo, o país da liberdade, igualdade e fraternidade, faria algo que tão obviamente viola a liberdade das pessoas”.
Aos opinólogos nacionais que argumentaram a favor da lei de Sarkozy com a premissa de que as mulheres muçulmanas são vítimas de sua cultura e não têm realmente escolha no que fazem, este colunista sugere uma entrevista com Kenza Drider, notável desobediente civil na melhor tradição democrático-iluminista ocidental. Para quem defendeu mais esse ataque contra o mundo árabe e/ou muçulmano com argumentos feministas, sugiro o eloquente texto das feministas Piya Chatterjee e Sunaima Maira, publicado no Alternet e intitulado “Carta Aberta a todas as feministas: Apoiem as mulheres muçulmanas, árabes e palestinas”, onde afirmam: “no atual clima de agressões iniciadas ou apoiadas pelos EUA contra mulheres no Afeganistão, Iraque e Palestina, perturba-nos profundamente um tipo de discurso feminista ocidental hipócrita que continua a se preocupar com alguns tipos de violência contra as mulheres muçulmanas e do Oriente Médio, enquanto escolhe permanecer silencioso acerca da violência letal perpetrada sobre mulheres e famílias pela ocupação militar, os F-16, os helicópteros Apache e os mísseis pagos pelos contribuintes estadunidenses”.
A violência perpetrada pela nova lei francesa sobre o corpo das mulheres muçulmanas não é idêntica, evidentemente, à dos mísseis. Mas a lógica que a justificou é exatamente a mesma, e se repete agora na Líbia: o bom e velho etnocentrismo ocidental continua se perpetuando com o argumento de que é necessário salvar os outros de si próprios.
Este artigo é parte integrante da edição 98 da Revista Fórum.
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