Eduardo Sales de Lima - Brasil de Fato
“Não quero que meus netos achem que o meu pai foi o equivalente ao [Osama] Bin Laden. Honrar a luta dele é fazer com que a verdade sobre o modo como ele foi morto seja restaurada”. A dona dessa preocupação é a professora de psicologia da USP, Vera Silvia Facciola Paiva, filha do escritor Rubens Paiva, desaparecido e morto na ditadura civil-militar brasileira.
Vera e inúmeros outros familiares de mortos e desaparecidos políticos estão ávidos pela criação de uma Comissão da Verdade acerca de um dos períodos mais vergonhosos de nossa história. “Isso será importante para nós em termos de apaziguamento de nossa família, mas será muito mais importante em função de fazer a luta pela qual meu pai morreu continuar; ele morreu porque militava por justiça, pela verdade e pela não-discriminação dos direitos”, destaca Vera.
Há cerca de um ano está em poder do Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7.376, de 20 de maio de 2010, que “cria a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República”. Sob um ponto de vista panorâmico, o objetivo será “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos”, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. O projeto de lei que cria a Comissão da Verdade tramita no Congresso em regime de urgência urgentíssima, e já no início do segundo semestre ela poderá sair do papel.
A Comissão não terá o caráter punitivo, mas poderá servir como material para ações na Justiça a serem levadas a cabo por outras instituições como o Ministério Público Federal, por exemplo. Na prática, sua função principal, de acordo com o Núcleo da Preservação da Memória Política, será a de revelar as causas, as consequências, o modus operandi e as motivações do regime que cometeu os atos de violência e repressão, identificando aqueles que foram os perpetradores dos abusos cometidos. “Conhecendo isso, podemos criar leis que impeçam que liberdades sejam afetadas novamente”, aponta Paulo Abraão, titular da Secretaria Nacional de Justiça, presente no debate sobre a Comissão da Verdade no Memorial da Resistência, em São Paulo, no dia 4 de junho.
Segundo ele, o diálogo com o passado que permitirá que fatos particulares sobre as circunstâncias da tortura possam se transformar em verdades compartilhadas. Isso é necessário porque, ainda de acordo com Abraão, existe na sociedade brasileira um movimento “negacionista”, que expõe para a sociedade a falácia de que houve uma suposta guerra, uma coibição ao autoritarismo de esquerda. “A verdade é direito das vítimas, mas também da sociedade”, conclui.
Como reforçou recentemente a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, “não havia uma guerra no Brasil”, e na perseguição a estudantes e sindicalistas e militantes em geral “o aparelho de repressão mandava prender, matar e jogar no mar.”
A Comissão da Verdade, entretanto, não deve ser considerada como a última etapa da de nossa transição política. De acordo com Paulo Abraão, “temos que limitar nossas expectativas em relação a ela”, porque “não trará à tona todos os crimes e todas as suas vítimas”, e sim “apenas diminuirá a margem de mentira em relação ao passado”.
E será a partir do relatório final dessa Comissão que Belisário dos Santos Júnior acredita que novas verdades oficiais terão de ser repetidas pedagogicamente, “e fazer com que se perpetuem no ensino e, consequentemente, na memória do país”, salienta o membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e Presidente da Associação de Advogados Latino-Americanos pela Defesa dos Direitos Humanos.
Névoa?
Nem todos os indivíduos e as forças progressistas são tão otimistas quanto Paulo Abraão. O jurista Fábio Konder Comparato, por exemplo, indica que a Comissão da Verdade funcionará como mais um engôdo à sociedade. Isso porque a criação da Comissão teria sido como uma resposta do Estado à condenação da Corte de Direitos Humanos da OEA.
Mesmo dentro do Projeto de Lei que versa sobre o caráter da Comissão, há questionamentos que precisam ser esclarecidos. O PL também não contempla nenhum tipo de consulta à sociedade na seleção dos integrantes da Comissão.
Mais um problema. Segundo o jurista Fábio Konder Comparato, a Comissão não terá poderes para impor, a quem quer que seja, o dever de testemunhar. Além disso, existe a previsão de que haja confi dencialidade de depoimentos, o que poderia a proteger militares ligados a mortes ou torturas.
Segundo conta Marcie Mersky, diretora do Centro Internacional para a Justiça de Transição – ICTJ, as audiências públicas foram muito importantes na África do Sul e no Peru. “Há certos aspectos que necessitam de confidencialidade, para proteger testemunhas. Mas as audiências devem ser públicas. O projeto atual não garante isso. É muito difícil acreditar que o resultado, a partir disso, traga mudanças nas instituições”, afirma Marcie, que foi coordenadora do relatório final da Comissão da Verdade na Guatemala e esteve presente no Memorial da Resistência, em São Paulo.
Outra lacuna no Projeto de Lei: nada consta acerca das ligações entre membros da máquina repressora brasileira com as de outros países latino-americanos, também governados por ditadores. “E essa relação entre as ditaduras? E a Operação Condor?”, questiona Belisário dos Santos Júnior.
Mas podem surgir elementos positivos também. De acordo com o governo federal, a comissão será independente, sem que nenhum de seus sete membros tenha ligação com militares ou militantes contra a ditadura. “A qualidade do trabalho da comissão dependerá, de fato, de quem for compô-la, do grau de proteção (para não ser perseguido) e da autonomia de seus integrantes. Isso para que os militares, desconfortáveis com a sua memória e que queiram oferecer informações, por exemplo, se sintam à vontade para fazê-lo, e o mesmo com os militantes de esquerda”, defende a filha do escritor Rubens Paiva, Vera Paiva. Apesar de todas as reticências que envolvem a comissão, Paulo Abraão reforça seu otimismo. “No discurso político existe, do lado oponente [ex-militares torturadores], uma esperança de que ela funcione como uma forma de dissipação do dever da Justiça. Mas não existe Justiça sem a verdade e vice-versa. Talvez o resultado promova a mudança de postura do STJ - Superior Tribunal de Justiça, no que refere à Lei de Anistia”, ponderou.
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