“O legislativo é refém da religião”, avalia pesquisador
Vivian Virissimo no Sul 21
Doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Seffner é especialista em estudos que relacionam religião, sexualidade e políticas públicas. Em suas pesquisas, ele vem notando que temas antes circunscritos a grupos especializados – como a questão do Estado laico – vêm se incorporando à luta diária dos movimentos sociais.
Para o pesquisador, porém, este processo não vem sendo acompanhado pelos partidos políticos, especialmente àqueles ligados à direita e a grupos religiosos. Projetos como a criação do Dia do Orgulho Heterossexual são resultado da recorrente confusão entre preceitos religiosos e Estado laico. “Às vezes as pessoas se confundem e essa mistura vai gerando esse monstrengos como é o caso do Dia do Orgulho Hetero”, afirma Seffner.
Em entrevista ao Sul21, Seffner discute temas como o Dia do Orgulho Hetero, a união estável entre homossexuais, a criminalização do aborto, entre outros. “É na peleia com o judiciário que se têm conseguido os avanços, e o legistativo é refém das coisas religiosas. Parece que sobrou um lugar para encaminhar a luta, diferentememente da Argentina e do Uruguai, que encaminhou de outra maneira, pela Casa Legislativa, de forma mais autônoma dos sistemas religiosos”, avalia o pesquisador.
Sul21 – Um dos eixos da tua pesquisa é a popularização da discussão sobre Estado laico. Em que momento o movimento LGBT começa a se apropriar do tema para estimular o debate na sociedade?
Fernando Seffner – Em 2005, a Parada Gay de São Paulo teve como lema o Estado laico. Pela primeira vez os movimentos sociais da sexualidade utilizaram essa palavra num evento que reuniu milhares de pessoas. Neste ano, por exemplo, o lema lembrou a Igreja e também gerou uma polêmica com a proposta do movimento: “Amai-vos uns aos outros”. Antes, Estado laico era um termo exclusivo de juristas e não fazia parte de discussões mais populares. Eu vejo que nos últimos cinco anos essa expressão começou a ser utilizada sistematicamente nos debates.
Sul21 – Qual tua avaliação sobre o projeto em tramitação no Congresso, que institui a lei anti-homofobia?
Fernando Seffner – Eu acho que nós precisaríamos tipificar a ofensa homofóbica, da mesma forma que nós tipificamos a ofensa racista. No Brasil, existem três pessoas processadas por racismo nesses anos todos. Daí você me pergunta: mas então a lei não funcionou? Sim, ela funcionou. A existência da lei obstaculizou os casos de racismo e nós percebemos a diminuição do racismo nas escolas e locais de trabalho. Eu acho que existe uma certa mistificação nessa discussão, pois tipificar um crime não vai impedir que uma religião considere que é melhor não ser homossexual. Mas uma lei vai dar uma defesa para as ofensas homofóbicas mais graves.
Sul21 – A bancada evangélica contesta o projeto, defendendo a liberdade religiosa de fazer pregações a respeito do assunto.
Fernando Seffner – O tom das pregações pode ser visto na televisão e com facilidade a pregação se transforma numa agressão, que também atinge as mulheres. Eu considero que a igreja católica achou uma saída teológica para este assunto. Ela tem uma posição de acolher o sujeito, mas não acolhe a prática. “Você quer ser homossexual, pode ser, só não podes praticar”, diz a igreja. Essa frase pode ser entendida assim: você só não pode dizer para os outros que você pratica. A igreja católica não é tão inimiga disso quanto as igrejas evangélicas, que fazem uma campanha cerrada e, com isso, abre espaços para agressões. Ora, se isso está “errado”, é contra natureza e não é um “negócio” de Deus, abre espaço para todo tipo de agressão. Eu sou a favor do projeto, acho que se deve estabelecer limites no espaço público e as pessoas tendem a confundir isso.
Sul21 – Ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece as uniões homossexuais, o poder legislativo está longe de tratar o tema.
Fernando Seffner – Tem sido o jeito no Brasil. Aqui no Rio Grande do Sul, a justiça já concedeu adoção de filhos para travesti e a mudança de nome é algo bastante comum: a Roberta Close teve o pedido negado no Rio de Janeiro e aqui no RS travestis garantiram emissão de novas carteiras de identidade. Eu estava em Brasília no dia que o STF reconheceu a união estável e essa decisão mostra que é na peleia com o judiciário que se têm conseguido os avanços, e que o legistativo é refém das coisas religiosas. Parece que sobrou um lugar para encaminhar a luta, diferentememente da Argentina e do Uruguai, que encaminhou de outra maneira, pela Casa Legislativa, de forma mais autônoma dos sistemas religiosos. Acho muito importante em termos de igualdade de direitos, mas eu não acho que foi uma grande coisa do STF, porque isso tem a ver com o fato de que no Brasil já tinha sido construído um certo consenso. Não estou com isso querendo diminuir, mas quando se decide algo por unanimidade significa que os juízes brasileiros já vinham concedendo há muito tempo. O modo com que foi abordado pela imprensa parece que aqueles doze ministros “iluminados” se reuniram para decidir. Pelo contrário, essa é uma prática que vem sendo feita há tempos e a justiça como um todo veio caminhando para isso.
Sul21 – Alguns partidos políticos e as instituições religiosas estão cada vez mais se unindo e tentando impor alguns preceitos religiosos, como é o caso do Orgulho Hetero.
Fernando Seffner – Quando se olha a composição dos parlamentares que votaram, notaremos uma junção de partidos mais à direita e de várias junções religiosas. Aí temos uma discussão interessante que é a do mandato popular. O mandato não é eterno, é de quatro e no máximo oito anos. Esse cargo pode ser retirado, pois esse cargo “não foi dado por Deus”. Eu acho lamentável quando um político se elege para a Câmara Municipal de Porto Alegre e diz que o cargo foi dado por Deus. Menos. Às vezes as pessoas se confundem e essa mistura vai gerando esse monstrengos como é o caso do Dia do Orgulho Hetero e aquela discussão maluca do segundo turno das eleições sobre aborto.
Sul21 – Aproveitando o gancho, qual a sua posição sobre a criminalização do aborto e políticas públicas voltadas para as mulheres?
Fernando Seffner – Esse é um ponto nodal do feminismo. Certamente, como política pública, o aborto tem que ser disponível para as mulheres que assim desejarem e regulamentado como em outros países. Se as religiões não concordam, elas têm todo o direito de dizer para seus fiéis que não devem fazer. Inclusive, eu acho que no Brasil grande quantidade de pessoas não vai fazer. Mas a gente tem que ter a possibilidade de a mulher realizar esse tipo de procedimento e isso deve ser feito com segurança. As complicações decorrentes do aborto seguem sendo uma grande causa de morte feminina, isso é uma coisa que não pode existir.
Sul21 – Há levantamentos apontando o fato de que a maioria das mulheres criminalizadas são pobres.
Fernando Seffner – O aborto se configura no Brasil como um problema de saúde pública. Isso pra mim é uma grande maldade. Um país onde a igreja tem tanta influência, acaba condenando a população mais pobre a uma série de complicações e silencia sobre a classe média, a qual também faz aborto em clínicas especializadas no procedimento. O único caso que resultou em processos para a classe média ocorreu em Goiânia quando foram encontradas fichas de 17 mil mulheres que fizeram o procedimento. Foram gerados processos contra todas estas mulheres. Esse caso também revela o grande volume de mulheres que praticam o aborto no país.
Sul21 – Recentemente a ONU elaborou um estudo sobre o ensino laico no Brasil e recomendou a revisão da legislação brasileira que prevê ensino religioso na escola pública. Qual tua opinião sobre o assunto?
Fernando Seffner – A minha posição questiona a pertinência do ensino religioso na escola pública. Eu não vou discutir escola privada porque a situação é diferente. A escola pública detém 85% do alunado. Em alguns momentos do ano letivo, o pertencimento dos estudantes e dos professores deve ser objeto de discussão, mas não quer dizer que eu seja a favor de uma disciplina que gera uma nota. Mesmo não sendo obrigatória, ela caiu numa situação que traz imensos problemas para a escola, que não tem como prover outra atividade regular. O segundo problema é que a maioria dos professores não tem formação para abordar este tema e termina fazendo da aula uma continuação de suas crenças pessoais. A melhor modalidade de se fazer isso seria por meio de projetos que abordam temas transversais com livre adesão. A disciplina de ensino religioso, como está colocada, é uma meia verdade, pois ela é opcional, mas tem caráter obrigatório. Do meu ponto de vista isso é profundamente constrangedor.
Sul21 – E também tem a questão do sincretismo religioso, muito presente no país.
Fernando Seffner – O Brasil é o país que tem o maior número de católicos. Mas os católicos são muito diferentes uns dos outros, por conta do sincretismo. O catolicismo é uma religião que tem tanta diversidade que as pessoas dizem que são praticantes ou não. As pessoas têm trajetórias religiosas muito diferentes e têm, muitas vezes, duplo ou triplo pertencimento religioso. Elas são católicas e vão ao centro espírita, ao terreiro de umbanda, praticam o budismo — uma religião que tem ganhado muita adesão.
Sul21 – O senhor afirma que o pertencimento religioso não deve ficar restrito à esfera privada e critica o dito popular que desaconselha as discussões de religião, política e futebol. Por que é tão importante discutir religião para fortalecer a democracia e o Estado laico?
Fernando Seffner – Eu sinto que o pertencimento religioso afeta algumas questões no espaço público. Para saber que é proibido por lei, por exemplo, uma religião falar mal da outra, isso precisa ser discutido na escola, na justiça e em outros espaços públicos. O Brasil tem muitos pertencimentos religiosos diferentes, aqui não é a França que 47% da população não liga para religião, aqui 95% acham que é algo importante, por isso o Brasil tem que aprender a conviver com o sincretismo religioso. Só conhecendo a religião do outro que se consegue respeitar e tolerar o que é diferente. Ainda mais num contexto em que todas as religiões podem ser ridicularizadas, mesmo os católicos que são maioria, levando em conta os escândalos da pedofilia. Todas as instituições religiosas estão na berlinda e têm seu calcanhar de Aquiles. Por isso, respeito e tolerância são coisas que se aprende, ninguém nasce sabendo.
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