sábado, 24 de setembro de 2011

Um revólver na minha infância

Um revólver na minha infância


Paulo Moreira Leite



Não consigo parar de pensar na história de D., aquele menino de dez anos que levou um revólver até a sala de aula, deu um tiro na professora de português e depois se matou. Ele usou a arma de trabalho de seu pai, guarda municipal e vigia noturno nas horas de folga. Leio nos jornais que o revólver ficava guardado numa caixa de papelão, em cima de um armário. D. apanhou o revólver, colocou na mochila e foi para a escola, onde ocorreu a tragédia.

Leio  a história de D. e penso em minha própria história.

Cresci com um revólver calibre 32 dentro de casa. Ficava guardado numa caixa, na parte de cima do armário do quarto de meus pais, numa prateleira que parecia alta demais para as crianças alcançarem. Era um belo Smith & Wesson, importado, cano médio.

Certa vez, meu pai mostrou o revólver aos filhos, o que deixou todos muito excitados. Ele nos deu um conselho que nem sempre iriamos seguir, que era jamais apontar uma arma para outra pessoa, mesmo que ela não estivesse carrregada.

Meu pai era um homem bom, ético e responsável. Devo a ele as melhores lições que recebi na vida, as mais duradouras.

Mas até ele tinha dificuldade em esconder as emoções profundas envolvidas na posse de uma arma, instrumento escuro e pesado que pode tirar a vida de alguém com um simples movimento no dedo indicador.

Há uma espécie de transe moral num revolver.

Meu pai costumava esconder o Smith & Wesseon no armário, e tinha certeza de que jamais iríamos encontrá-lo. Na verdade, várias vezes nós pegamos o revólver para integrá-lo ao arsenal de plástico  de nossas brincadeiras de mocinho e bandido.
Rapidamente, o “revolver de verdade” tornou-se a arma mais disputada pelas crianças. Havia uma sensação tácita de que era a mais letal e isso, naqueles tiroteios permanentes pela casa, era o mais importante em nossas fantasias.

Inconformado com nosso prazer em mexer com o “revólver de verdade” meu pai mudou de esconderijo algumas vezes. Bastava que saísse para trabalhar para a gente dar uma busca geral pela casa até encontrá-lo de novo.

O único fato que dava alguma tranquilidade a meu pai e minha mãe é que as  balas ficavam escondidas em outro lugar, aparentemente mais seguro. Mas lembro que um dia eu abri uma pequena caixa de papelão cinzento e grosso no meio das roupas de meu pai e encontrei uma pilha de cilindros de chumbo escuro, com uma base de metal dourado onde se podia ler o nome do fabricante da bala, o calibre, e aquele ponto saliente onde ficava a polvora para produzir a explosão. Era maravilhoso, tirava a respiração.

Longe dos adultos, chegamos até a carregar o revolver algumas vezes. Ninguém se atreveu, é claro, a mexer no gatilho. Bastava contemplar aquele poder imenso e misterioso.
Embora tivéssemos dez anos, um pouco mais, um pouco menos, nós nos achávamos muito precavidos e responsáveis. Crianças absolutas. Acreditávamos ter uma noção perfeita do risco.
Só  apertávamos o gatilho — plac!, plac!, plac! — depois de conferir que o tambor estava descarregado.

Quando soube o que acontecia em nosso faroeste infantil, meu pai vendeu o revolver na hora. 

Disse até que recebeu um bom dinheiro, pois era uma arma de qualidade. Hoje eu acho que era só desculpa. Ele compreendeu que precisava livrar-se daquele Smith & Wesson de qualquer maneira e ficou aliviado. Nunca mais falamos no assunto mas tenho certeza de que sentia culpa e vergonha pelo risco que seus filhos tinham corrido.

Muitos adultos da geração de meu pai costumavam ter armas em casa. Um tio chegou a ter um revolver igual ao de meu pai. Eram outros tempos. As pessoas se orgulhavam de sua pontaria, treinada em sítios e fazendas. Também frequentavam clubes de tiro e, quem possuia quintais maiores, podia utilizá-los para exercitar-se. Saber atirar fazia parte dos ritos de passagens que transformavam os meninos em homens. Tragédias ocorriam mas eram vistas como fatalidades inevitáveis.

Os mais velhos contam que, certa vez, nas vizinhanças de minha avó, um menino fuzilou o amigo da mesma idade que morava na casa vizinha com um tiro da espingarda do pai. 

Depois de uma briga de rua, aquele que sentia-se mais fraco decidiu assustar o rival. 

Imaginou que a espingarda estivesse descarregada. Seu pai passou anos na cadeia. 

Devastada, a família da vítima mudou-se de bairro e depois deixou o Brasil.

Não consigo imaginar dor pior que a de Milton Evangelista de Souza, pai de D. Guarda municipial e vigia noturno, ele tinha motivos profissionais para ter uma arma em casa.

Os jornais contam que, confiando nos filhos, lhes disse que, quando tivessem curiosidade, era só pedir que poderia mostrá-la. Tive a terrível sensação de ter passado por uma situação semelhante, muitos anos atrás.

Armas são sempre perigosas. Os adultos é que tem a obrigação de saber disso. As crianças apenas pensam que sabem e precisam ficar longe delas.

Na Época

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