sábado, 8 de outubro de 2011

O CQC ainda está no jardim da infância do politicamente incorreto

O CQC ainda está no jardim da infância do politicamente incorreto

Milton Ribeiro no Sul21


O humorista Rafinha Bastos foi afastado por tempo indeterminado do programa CQC. O motivo foi a deselegante brincadeira feita com a cantora Wanessa Camargo no programa exibido no último dia 19 de setembro.
As reação mais forte partiu de Marcos Buaiz, marido de Wanessa e sócio de Ronaldo Fenômeno na agência de marketing 9ine. Ele se posicionou publicamente contra a piada de Rafinha, fazendo com que o dito ganhasse enorme repercussão.
imbroglio remete aos novos limites admitidos para o humor em nosso país. Na década de 80, Os Trapalhões, programa dominical da Globo liderado por Renato Aragão, brincava com a cor da pele das pessoas. Nos anos 90, dentro da Escolinha do Professor Raimundo, Chico Anysio debochava dos homossexuais. Ainda toleraríamos tais piadas hoje em dia?
A turma do CQC | Foto: Band / Divulgação
O chargista e jornalista Arnaldo Branco diz que existe realmente “uma tendência mundial de testar os limites”. “Nos Estados Unidos, por exemplo, Stephen Colbert disse barbaridades na cara do Bush e o Ricky Gervais (que é inglês) apresentou o Globo de Ouro em estilo kamikaze. Só que aqui, se o patrocinador chia, demitem todo mundo. Não obstante, o CQC é um humor infantilizado, principalmente porque você sente os caras se comprazendo com a molecagem, com a própria ‘ousadia’ – mais do que sentindo orgulho autoral por uma piada bem elaborada”.
O CQC é uma franquia de uma produção argentina, já antiga. A sigla original significa “Caiga Quien Caiga” (Caia quem caia), cuja melhor tradução talvez seja “Doa a Quem Doer”. Durante muitos anos o programa foi apresentado na TV América argentina e reproduzida pela TVA aqui no Brasil. Os apresentadores argentinos eram muito bons e o que chamava a atenção era a total falta de cerimônia em perguntar o que o público gostaria de saber. Esta seria a principal diferença entre o original e a cópia, pois em vez de colocar os entrevistados em dificuldades por fatos de sua biografia, muitas vezes parte-se para o insulto ou a para uma saia-justa baseada numa livre-associação de trocadilhos e pegadinhas”.
O escritor e publicitário Nelson Moraes, que mantém o blog Ao Mirante, Nelson, – atualmente “em coma” –, fala sobre os insultos: “Caras como o Rafinha Bastos se valem do nicho ainda aberto de um humor politicamente incorreto no Brasil (nicho que a TV Pirata conseguiu mais ou menos preencher na década de 80). Então, ele acha que fazer apologia ao estupro, à truculência, à grosseria é preencher este nicho. Lembra o menino na escola gritando palavrões lá no fundo da classe, esperando ser mandado à diretoria pra poder chamar a professora de reacionária”.
"Rafinha comprovou que celebridades dotadas de poder revidam" | Foto: Band / Divulgação
Branco cita a questão da fórmula do programa, a qual utiliza muitas vezes perguntas capciosas a subcelebridades – e, às vezes, perde em sagacidade para elas. Branco fala em subcelebridades porque “celebridades mesmo, com poder, podem revidar, como o Rafinha acaba de descobrir”.
O chargista do Sul21 Eugênio Neves conta que viu poucas vezes o CQC por não gostar da fórmula, mas que uma vez achou tudo muito simbólico. “Era o aniversário da modelo Ana Hickmann e eles estavam na porta importunando os convidados que chegavam. Não gosto daquela gente, mas acho que eles têm direito à privacidade. Então, naquele dia, o repórter tinha no bolso um monte daquelas bombas que detonam quando a gente joga no chão. Uma hora ele se descuidou, bateu mais forte no casaco e aquilo começou a explodir descontroladamente. O cinegrafista perguntou se deveria continuar filmando e o repórter, realmente assustado, mandou aos gritos ele parar. E houve o corte. Eu achei uma bela isonomia: eles incomodando os convidados e sendo incomodados por um fato inesperado. Ou seja, quando é com os outros vale tudo, quando é comigo… Ora, se o humor vale num sentido, por não valeria no contrário?”.
Marconi Leal, redator de Zorra Total e romancista, analisa o humor do país de uma forma geral: “A nova geração, influenciada pelo humor americano, entrou em cena com uma variação dostand-up. Mas o stand-up brasileiro, ao contrário do que seus propagadores imaginam, está a léguas do americano e a milhares de léguas do inglês. Ele teve que se adaptar a sua audiência, e a audiência brasileira quer saber de piadas de sexo, de preferência que envolvam peido e palavrão – e não excluo a classe A desta preferência. Então, virou uma coisa meio bizarra onde o humor cerebral do stand-up é confundido com o insulto puro e simples, coisa própria de quem não domina uma linguagem que é estranha a nossa cultura”.
A Praça é Nossa: o verdadeiro humor nacional? | Foto: Divulgação
Marconi abre a questão da existência ou não de um humor nacional. “O conceito de ironia fina é estranho ao brasileiro. Preferimos ficar com o humor de tipos, que saiu do teatro, foi ao rádio com Max Nunes, desembocou na televisão (tendo em Jô Soares, Agildo Ribeiro e Chico Anysio seus maiores expoentes) e está aí até hoje, em programas como o Zorra Total e A Praça É Nossa. Como na política, cada povo tem o humor que merece. Se esse tipo de comédia fosse rejeitado pela população, esses programas não existiriam. E, no entanto, estão entre os de maior ibope na TV. Houve um período em que a televisão tentou quebrar esse paradigma, lançando programas como Armação Ilimitada, TV Pirata, Dóris para Maiores, Casseta & Planeta Urgente, Comédias da Vida Privada. Mas atualmente, com a ascensão da classe C, a tendência é a volta ao pastelão estilo novela. O Casseta & Planeta é o exemplo mais pungente disso que falo: quebrou a tradição de maneira radical nos primeiros anos e, nos últimos, vinha reproduzindo a comédia de tipos”.
Arnaldo Branco também fala da comédia de tipos brasileira ao afirmar que não há nada de ingênuo em programas como o Zorra Total, pois eles sabem exatamente a quem falam. “Pode até ser mais apelativo, mas só lá você pode ver um gigante do humor físico atuando, como Paulo Silvino. Ademais, tanto o humor popular quanto o erudito se valem de arquétipos; alguns dos clichês do Zorra são ecos distantes da commedia dell’arte. O programa está muito longe da sofisticação de um Millôr, mas também está distante da truculência de um CQC que, aliás, só é truculento com quem não sabe se defender. Toda vez que topam com o Maluf viram escada para o cara”.
"É um humor sem fundo, que só explora o ridículo. O humor mais nobre é o que diz o que não se pode dizer." | Foto: Divulgação
O chargista Eugênio Neves chama a atenção para passividade bovina de alguns humoristas. No passado, eles poderiam até ser um contraponto ao que dizia o editorial da empresa; porém, como hoje os contratados baixam a cabeça para a orientação dos veículos onde trabalham, restaria a eles o humor a favor ou o escracho como objeto de riso. “Quando tiram sarro de algum rico suspeito, não é relevante como foi obtida a fortuna, a crítica vem pelo viés errado. Ou seja, não há a tentativa de desnudar parcialmente a vítima do humor. É um humor sem fundo, que só explora o ridículo. O humor mais nobre é o que diz o que não se pode dizer. Veja o que faz o Iotti no Rio Grande do Sul, a criminalização dos movimentos sociais é a mesma pauta de seus patrões. É triste quando a piada serve de ilustração para o editorial”.
Para Nelson Moraes, o problema específico do CQC independe da passividade em relação à emissora onde é apresentado. “Se formos olhar o formato do programa, os caras não têmtiming, estão sempre um tom acima, são canastrões que acham que textos irreverentes atenuam uma encenação mambembe. Aquilo é uma tentativa de humor. Na verdade, o Brasil ainda está no jardim da infância do politicamente incorreto. Nosso senso de humor vai de um extremo a outro — do escracho com os desfavorecidos – o que em si não é problema, se não fosse monotônico — à superproteção aos desfavorecidos — o famoso humor a favor, que é o cancro da piada. Praticamente não temos nuance, é tudo em torno disso”.
A falta de nuances também é referida por Eugênio, que o considera fatal. “Dilma é a faxineira, Sarney, o vilão onipresente, Kadafi é um ditador sanguinário e Chávez um pateta. É o humor do senso comum. Ou talvez falte informação a eles para explorar as contradições”.
Marconi Leal: "Tudo o que não for padrão de cores poderá ser alvo de processo"
Porém, o que parece preocupar a sociedade brasileira são as regras de convivência e os limites do humor. O repertório cultural, político e religioso de cada um interfere na reação, por exemplo, ao CQC. O Brasil respeitador do politicamente correto seria demasiadamente suscetível? Marconi Leal chuta o balde. “Para piorar o panorama do humor brasileiro atual, você tem o politicamente correto. Certo, o politicamente correto não é uma invenção nacional, surgiu nos EUA, enquanto nós somos ibéricos burocratas, normativos, autoritários. O estado, no Brasil, regula até como o sujeito deve escovar os dentes. Nos EUA – e não sou nenhum admirador dos americanos – se publicam biografias não-autorizadas, há produtos e marcas que são esculhambados em rede nacional de televisão, há figuras públicas que não são perdoadas ao menor deslize. Aqui, a justiça manda recolher livros do mercado, processa sicrano porque chamou fulano de feio ou gordo (e fulano ganha o processo), e por aí vai. Você sabia que não se pode fazer piada com enfermeira em meios de comunicação no Brasil? O sindicato delas foi à Justiça e ganhou esse estranho direito. Só sabe da censura quem enfrenta esse tipo de cerceamento diariamente. Daqui a pouco, a TV brasileira só vai poder exibir o padrão de cores. Tudo o que não for padrão de cores poderá ser alvo de processo”.

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