sábado, 19 de janeiro de 2013

Estupros têm um propósito

Estupros têm um propósito

Cem Homens


Atenção: esse texto fala sobre estupro, com algumas descrições que podem incomodar. 
Eu não falei no blog sobre o estupro na Índia, tampouco da garota vítima de vários monstros nos Estados Unidos, menos ainda da jovem que se suicidou aqui em São Paulo.
Não que eu estivesse indiferente a esses assuntos. Às vezes não dá tempo. Na maior parte delas, no entanto, a dor é tamanha que é impossível conseguir escrever qualquer coisa.
No caso da estagiária de direito, meu coração se partiu em mil pedaços. Eu também já fui  estudante de direito e ela morava no mesmo bairro que eu. A Ana Paula, minha amiga (@anapalonso), viu como fiquei ao saber da notícia: enjoadíssima, com ânsia de vômito.
Há uns dois meses dei uma entrevista pra TV PUC e cheguei antes do horário combinado. Fiquei sentada na praça de alimentação, observando as garotas que tentavam se equilibrar no salto alto depois de passarem o dia pra lá e pra cá. Eu me vi nelas. Eu já fui igualzinha. Eu poderia ser a Viviane, empolgadíssima por estar estagiando no maior escritório de advocacia do país.
Eu também já senti o desespero de não querer mais viver; eu fui agredida (não sexualmente) e me senti impotente. Por tudo isso, não fui e não sou capaz de escrever sobre Viviane.
E nem sobre o caso da Índia e nem sobre o estupro coletivo nos EUA. É tudo tão cruel, tão desumano, tão aterrorizante, que tem horas que a gente não consegue. Por isso, traduzo mais um texto da Soraya Schemaly, publicado no Huffington Post, a respeito dos dois casos.
Estupros têm um propósito 
A mesma pequena parte de mim que ainda quer acreditar em fadas quis acreditar que eu seria capaz de não pensar ou escrever sobre estupro ao menos por algumas semanas. Mas é  impossível. Não com leis na Califórnia dizendo que mulheres solteiras não podem ser estupradas. Ou enquanto uma garota de 16 anos, inconsciente, é estuprada por vários jogadores de futebol – e o assunto “divide” uma comunidade dedicada ao time. Definitivamente não dá para deixar passar quando detalhes sobre o estupro da jovem de 23 anos em Délhi, envolvendo estripação, falência múltipla de órgãos e a consequente morte,  vêm à tona e provocam protestos ao redor do mundo.
Não importa onde você estiver no mundo, o resultado do estupro- ”date rape,” “gang-rape,” “easy rape,” “emergency rape,” “war rape” –é o mesmo: opressão. As mulheres não são livres para viverem sem a ameaça constante de agressão e violência ou sem serem tratadas como objeto e propriedade.
soraya
Da última vez que chequei, existiam pelo menos quatro “capitais do estupro” no mundo. Você sabe no que isso nos transforma? Em “subúrbios do estupro”. Garotas e mulheres não são idiotas. Pelo contrário. Nós entendemos perfeitamente: devemos “ter cuidado”. Não faça algo que vá fazer você “se arrepender”. “Fique em casa”. “E daí se acontecer?” Nós não sentimos qualquer segurança de que nossa integridade física vai ser respeitada. Que nosso consentimento importa. Nós não podemos aproveitar os espaços públicos com a segurança que os homens têm.
Nossas tentativas de buscar igualdade e oportunidade são inibidas, não só pelo estupro em si, mas pela falta de consciência dos outros a respeito disso. O estupro é útil, mesmo quando acontece contra garotos e homens: ele sustenta um sistema que recompensa dominância física e sustenta a hegemonia dos homens.
Quando precisamente uma garota ou uma mulher NÃO pensa “poderia ser eu”? Qual adolescente nos Estados Unidos não pensa um pouco mais sobre ir ou não a festas? Ou mesmo a respeito de dormir? Quando se torna muito aterrorizante pensar nos fatos ou quando é mais fácil se alinhar aos poderosos e dominantes, culpe a vítima, na esperança de “ser protegida”.
Hoje em dia, mais garotas, pelo menos por um momento, pensam que podem ser drogadas e estupradas por uma autointitulada “Gangue do Estupro”, como a de Steubenville, Ohio. Caso você tenha perdido as últimas do caso, o estupro continua gerando choque e repugnância. Se não fosse a obstinação da blogueira Alexandra Goddard e a exposição do Anonymous, o estupro – que durou uma noite inteira – de uma garota inconsciente, literalmente arrastada e periodicamente violada, urinada e fotografada teria caído no limbo.
Tudo isso aconteceu enquanto 50 outros garotos e garotas estavam presentes – todos sabendo especificamente o que estava rolando. E, ESSE é o ponto, não é? Um aviso para as garotas que poderiam ajudá-los. Não é só o que aconteceu, nem as variações do que acontece todo dia, mas a ideia de que poderia acontecer. Em todo o mundo.
Se assumimos o risco – tipo, vivendo – e somos estupradas, as pessoas ficam confortáveis em dizer que estávamos “provocando”, mesmo se você for uma garota de 11 anos, como aquela que foi estuprada no Texas por pelo menos 18 caras; ou garotos molestados por padres. E, sim, eu sei que garotos e homens são estuprados. Eles sofrem tremendamente. Quase sempre, eles não têm apoio, não conseguem a ajuda que precisam e vivem o resto dos dias com grande sofrimento. Mas, isso também têm relação com o que foi dito antes, porque quando garotos e homens são estuprados, eles não são só agredidos, mas também dizem que os fizeram de “mulherzinhas”, demonstrando como eles não têm valor.
Isso é uma mensagem, também, aliás. E, sim, eu estou escrevendo em termos binários de sexo, porque eles são essenciais nesse sistema opressor. As chances de abuso aumentam entre pessoas que “não se enquadram”. Esses são ainda mais ameaçados.
Há alguma demonstração maior de que estupros são sobre poder e dominação – e não sobre sexo – do que os estupros coletivos sobre os quais estamos falando abertamente agora? No final, que diferença faz se o estupro envolve canos enferrujados na Índia, ratos enfiados em vaginas na Síria, violência diária contra garotas na França ou drogas para incapacitar garotas nos Estados Unidos? Eu não consigo enxergar por qual razão não se faz essa comparação quando elas são tão gritantes.
Estritamente falando, ignorar a relação de um estupro coletivo na Índia com um nos EUA – ou na França – deixa de fora informação contextual importante – social, cultural, legal e judicial. Há profundas conexões nas formas como os agressores são educados – em casa, na escola, na igreja, nos esportes – a denegrir o feminino e as mulheres como o caminho para glorificar sua masculinidade, para demonstrar sua dominância e superioridade, provando a insignificância de garotas e mulheres.
Tudo isso enquanto simultaneamente se constrói ideais inatingíveis de “pureza feminina”. Na Índia, onde o estupro é um aspecto arraigado na cultura misógina com a implacável violência contra garotas e mulheres, foi necessária a morte desta garota para finalmente fazer as pessoas acordarem.
No entanto, apesar do fato de ser um dos piores lugares do mundo para uma mulher ou garota, a Índia não detém o monopólio de ensinar mulheres a “se submeter” ao estupro ou a serem apontadas como culpadas. Ou violência contra a mulher. Só ficou mais óbvio. A massa de pessoas e o ódio evidente finalmente tornou impossível para que eles ignorassem a misoginia.
Como queríamos. Mesmo que eu genuinamente tenha vontade de pensar que globalmente nós estamos num momento estratégico de reflexão a respeito da violência contra a mulher, tenho grandes dúvidas.
Como Jessica Valenti aponta, nós temos um “problema de estupro”, mas teimamos em admitir isso. Nas últimas semanas, com a cobertura da imprensa, lia-se nas entrelinhas que “nós somos melhores que eles”, e que a misoginia e o patriarcado na Índia são coisas de lá. Assim, ficou a ideia de que “nós estamos bem”, e que as mulheres não tem nada a reclamar nos Estados Unidos.
O estupro é, na verdade, parte de um sistema de violência complexo e muito maior. Fingir que Steubenville é algo fora do comum, ou que os rapazes envolvidos é que estão fora do padrão, é de alguma forma ficar em conluio com os estupradores. E balançar a cabeça e apontar o dedo para a Índia é desonesto, racista, colonialista e hipócrita.
Lauren Wolfe, diretora do Women Under Siege Project, criou um “Basta de cultura do estupro em 2013″. Como ela e outros dizem, o primeiro passo para acabar com o estupro é parar de culpar a vítima, e focar nos estupradores e na cultura que os produz. Ela não está falando só do Congo, da Síria ou do Egito. Rapazes que drogam uma garota e depois a estupram, a sequestram, estupram de novo, fotografam, fotografam o estupro, urinam na garota e depois fazem vídeos tirando onda, fazem isso porque eles se sentem protegidos e no direito de fazê-lo. (Escrevi essa frase deliberadamente porque estou cansada de ver “ela foi estuprada”, como se ela tivesse alguma participação no próprio estupro ou que não houve um agressor.)
estupro
Esses rapazes não foram ensinados, como adultos, que tais ações são crimes contra a humanidade moralmente repugnantes. Porque nós rimos de estupro e zoamos quem reclama. As garotas que testemunharam esses eventos não falam porque elas acham que serão as próximas ou sabem que não acreditarão nelas. Elas aprenderam a internalizar isso.
Afinal, nós ensinamos nossas crianças que é aceitável para os garotos serem protegidos de xingamentos e punição após estuprarem, e eles vão para faculdades onde há “fábricas de estupro” e nas fraternidades os jovens brincam de “quem você estupraria”.
Os homens são incomparavelmente os maiores estupradores – de garotas, de garotos, de mulheres, ou de outros homens. A natureza de gênero deste crime é incontestável. Mas homens não nascem para estuprar. E, enquanto eu entendo que a maioria dos homens não andam por aí se achando os todo-poderosos, ou que eles têm o direito de estuprar, muitos deles pensam isso, sim. Eles se sentem no direito de fazê-lo. Tirar esse “privilégio cultural” deles não desumaniza ou oprime homens. Isso apenas liberta as mulheres e as pessoas que “não se adequam”.

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