Caso o relato a seguir não seja suficiente para entender o que um estupro provoca na vida de uma mulher, pense se sua mulher ou se sua filha fossem violentadas por um homem qualquer, na rua ou na igreja que vocês frequentam. O seu julgamento de que o estupro é um crime menor que um aborto seria o mesmo?
Por Lis Lemos, em Blogueiras Feministas
Carla sentiu um puxão no braço. Quando se virou levou um murro no nariz. Tentou gritar. Logo sentiu algo bem debaixo das costelas e ouviu: “se você gritar eu te mato agorinha mesmo”. Quando ele a jogou no chão sentiu o mato molhado, um cheiro de cocô de cachorro e um pedaço de tronco bem debaixo das suas costas. Pensou em pegar o toco e bater nele. Levou outro murro e viu, ou sentiu, já não lembrava mais, a arma encostada na sua cabeça. Ouviu de novo aquela voz nojenta, que não conseguia identificar: “se mexer de novo, eu te mato, sua vagabunda”.
Vagabunda, piranha, puta foi só o que ouviu dali em diante. Sentiu aquela mão pesada, grossa, percorrendo seu corpo, quando ele abriu o botão da sua calça com força começou a chorar. “Cala a boca vadia”. Sentiu os dedos arrancando sua calcinha, passando pela sua vagina, teve vontade de vomitar. Ele enfiou o pau dentro dela. Sentia ele respirando, arfando em seu pescoço. Depois que ele a penetrou, já não sentia nada. Cerrou os dentes. Não pensava mais. Sentia nojo. Ele a xingava. Passava a mão por seu corpo, puxou seu cabelo tão forte que arrancou vários fios de uma vez só. Ela gritou e levou mais um murro na boca. Sentiu ele ejacular, sair de cima dela e falar: “não sai agora sua vagabunda”.
Não se lembra quanto tempo ficou lá. Queria morrer, só isso. Morrer. Era a única coisa que esperava da vida agora. Mas não morreu. Teve que se levantar. Chorava, as pernas tremiam, não conseguiu andar. Estava descalça, as calças arriadas, a blusa rasgada, sentia a boca toda dormente, o rosto deveria estar inchado. Andou pela rua, não sabia para onde ir, pensou em atravessar a rua e morrer atropelada. Seria a solução. Mas não deixaram. Um taxista parou, ela tremeu toda, imaginou aquele homem em cima dela de novo; “moça, cê ta bem? Eu levo a senhora pra delegacia”.
O que mais podia piorar? Aceitar ajuda de um estranho já não lhe causava horror. O homem a levou a uma delegacia. Se sentou num banco frio, num canto. De lá foi levada para o IML para fazer o exame. Na delegacia não lhe informaram que ela poderia ir primeiro a um hospital, tomar os remédios para evitar doenças sexualmente transmissíveis e pílula do dia seguinte para evitar engravidar. Teve que reviver aquela coisa asquerosa toda de novo, contando para a psicóloga da Deam e a delegada. Depois tomou os remédios e foi para casa.
Não queria ir pra casa. Não queria contar para a mãe e o pai o que lhe aconteceu. Queria morrer. Só isso. Mas foi para casa, chorou como uma criança no colo da mãe, ficou envergonhada, achou que tivesse culpa, “não devia estar andando naquela rua uma hora dessas”, tomou banho, vomitou, não quis jantar. Sentia um embrulho enorme por dentro. A irmã estudante de farmácia lhe deu dois calmantes, ela tomou e desmaiou.
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Essa descrição pode ser a história de qualquer uma das milhares de vítimas de estupro desse país. Aí um deputado, que nunca será vítima de um crime desses, que faz parte de um grupo que se diz a favor da vida, resolve criar um projeto de lei que quer incentivar que mulheres estupradas não façam aborto, “pois essa seria outra violência”.
Ora, o que se percebe é que esses grupos não têm o menor entendimento do que é vida. A vida de uma mulher não vale muita coisa para essas pessoas, mas a vida de algo que pode, ou não, um dia vir a se tornar gente, ah isso vale muito. Esse tipo de gente, acha que mulher é cachorro: “ah, tem o filho, depois você dá pra alguém”. Mas também são os primeiros a crucificar uma mulher que entrega o filho para adoção. Essas pessoas não acham que mulher seja ser humano, que tem sonhos, vontades, desejos, responsabilidades, direitos.
Para gente desse tipo, um estupro é um crime pequeno, algo como tirar doce de criança. Aliás, de criança não, porque eles gostam mesmo é de feto. Para eles, toda a violência que uma mulher sofre não é nada, porque para eles mulher é nada. Aborto, mesmo o previsto em lei, é que é uma aberração.
Para o tal deputado que fez essa lei baseada apenas no seu eleitorado, e que se esquece que como representante do povo, ele não representa só a sua igreja na Assembleia Legislativa, fica uma dica: conheça a realidade das mulheres vítimas de violência sexual. Vá à Deam de Goiânia e veja como chegam lá as mulheres que foram estupradas. Caso isso ainda não seja suficiente para entender o que um estupro provoca na vida de uma mulher, pense se sua mulher ou se sua filha fossem violentadas por um homem qualquer, na rua ou na igreja que vocês frequentam. O seu julgamento de que o estupro é um crime menor que um aborto seria o mesmo?
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