quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre brigas de marido e mulher

Sobre brigas de marido e mulher

Pedro Munhoz - bhaz




Imagine que você esteja na garagem de seu prédio e, à distância, percebe que o simpático casal que reside no apartamento 202 está tendo um grave desentendimento. Você pode ouvir os gritos e acusações de parte a parte e, pela dinâmica gestual de ambos, percebe que os ânimos exaltados podem acabar em violência física. Parado, sem saber muito bem como agir, você simplesmente observa enquanto, intimamente, estranha a conduta de seus dois vizinhos.
Antes de presenciar a briga, você, que não tem muito contato com o casal, jamais imaginaria que eles fossem capazes de brigar tão feio. O rapaz sempre fora muito educado, não ouvia música alta, não jogava detritos pela janela do apartamento, tinha um bom emprego e sempre lhe pareceu um homem ponderado e discreto. Você acaba, até, se recordando vagamente de um dia em que ele segurou a porta do elevador para que uma idosa residente no sexto andar embarcasse e, de quebra, ajudou a mulher a carregar uma pesada sacola de compras.
A esposa dele, igualmente educada e ainda mais discreta, você chegou a ver apenas umas poucas vezes. Mulher jovem, cujo semblante transmitia seriedade. Tinha uma filhinha pequena e não trabalhava fora.
Mas nada naquela cena remetia à imagem que você, a uma distância segura, tinha do casal. Você pensa em se afastar e faz menção de dar as costas para o bate-boca em direção ao elevador, mas o tom de voz do homem faz com que sua curiosidade se atice: ele acabou de chamar a esposa de vagabunda e de outros nomes impublicáveis enquanto dava murros na lataria do próprio carro. Ele levanta a mão direita com agressividade e o seu sangue de pessoa pacífica, ordeira, avessa a confusões e à violência, simplesmente congela.
No momento seguinte, ela está caída no chão, protegendo o rosto com os braços, em posição fetal. No exato momento em que você pensa em se movimentar para acudir sua vizinha, aparece, vindo do nada, o porteiro, que segurando o braço do homem, diz-lhe algumas palavras em voz baixa. A mulher, ainda no chão, parece chorar  e o marido, em questão de segundos, desfazendo-se suavemente do porteiro, ajeita suas roupas e, depois de dizer algo que você não consegue ouvir, sai do prédio pisando duro, pelo portão da garagem.
O porteiro passa diante de você amparando a mulher e se dirige até o elevador. Ela chora e treme, seu rosto está vermelho, não se sabe muito bem se pelo murro, pelo pranto ou pelo nervosismo. O solícito funcionário do prédio parecia consolá-la, perguntava se estava tudo bem e, provavelmente, se prontificou a atender a moradora caso ela precisasse de algo.
Você, que não queria se envolver, permanece parado na garagem, disposto a pegar o próximo elevador para não ser confrontado com aquela situação incômoda. Enquanto aguarda a chegada do elevador, tece algumas reconfortantes reflexões sobre o quanto os relacionamentos humanos são complicados e o quanto um homem de bem pode acabar agindo de forma impensada e violenta, negando até mesmo sua esmerada educação, seus valores e sua essência em uma situação como aquela.
Você pega, finalmente, o elevador e, como mora no último andar, ainda dedica mais algum tempinho de reflexão à lamentável ocorrência. Por um átimo de segundo, corre por sua mente, como uma brisa, a hipótese de que você poderia ter intercedido na briga e evitado a violência física, mas a incômoda preposição, refém do futuro do pretérito, logo passa quando você se convence do fato de que não conhecia bem a mulher e que, no final das contas, apesar do verniz de respeitável mãe de família de que se revestia a jovem, as aparências constantemente enganam. Você se recorda, subitamente, que sua ex-namorada que mais parecia fiel, companheira e amiga chegou a lhe trair em um passado distante, proporcionando a você momentos muito duros, de tristeza e humilhação.
“Sei lá, talvez ela tenha provocado. Não conheço a história, não sei o que aconteceu” você pensa, engendrando a sentença absolutória de sua própria omissão.
No fim, o elevador para e, como epílogo para o desagradável episódio, vem à sua mente a recordação de uma frase que sua mãe, mulher sábia, guerreira e santa, sempre lhe dizia: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher.” E, acalentado pela sabedoria popular, feliz por ser um homem que sabe respeitar o espaço dos outros, dorme o sono dos justos, sem mais pensar no assunto.
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Peço licença aos leitores para interromper essa história e falar um pouco sobre a forma como até mesmo o próprio Direito Brasileiro, por muitos anos, endossou o tipo de comportamento do protagonista e, de outro lado, explicar a razão pela qual esse tipo de conduta não mais se sustenta.
Durante a maior parte da história da humanidade e, em particular, da história do Brasil, considerou-se que quase tudo que ocorria no âmbito doméstico ou familiar não era da alçada das leis, da justiça, da tutela do Estado ou de qualquer pessoa alheia a um dado âmbito familiar.
O modelo de sociedade patriarcal, estampado no Código Civil Brasileiro de 1916 (que vigeu, com alterações, até 2002), delegava ao homem, de forma explícita, a função de ser “a cabeça do casal”. Isso significava, em termos práticos que a mulher casada não gozava de capacidade civil plena, sendo impedida de exercer profissão sem a autorização do marido, de realizar negócios e de outros atos da vida civil que hoje parecem elementares. Apenas em 1962 esse modelo foi parcialmente derrubado por nossos legisladores com o advento do Estatuto da Mulher Casada, que conferia poderes iguais a ambos os cônjuges.
Em outros dispositivos, também, a defesa explícita de um modelo que privilegiava o direito dos homens em detrimento das mulheres faziam-se sentir, como na permissão de anulação do casamento diante da não-virgindade da mulher (não do homem) e a prerrogativa do pai de negar à filha que apresentasse “comportamento desonesto” o seu direito de herança.
Também as decisões judiciais, até bem recentemente, se deixaram pautar por uma noção de direito que, inferiorizando a mulher, dava um aval autorizado para que homens cometessem, impunemente, crimes bárbaros. A tese da legítima defesa da honra absolveu um sem número de réus que mataram suas esposas porque seus advogados argumentaram ao júri que o motivo do assassinato tinha sido uma traição ou um adultério cometido pelas vítimas. Por outro lado, muitos juízes defendiam que um homem que estuprasse sua esposa era inocente, pois estaria agindo sob amparo do “exercício regular de direito” já que a satisfação sexual do esposo era considerado um dever matrimonial das mulheres. Para arrematar, cabe esclarecer que, até os dias de hoje, não é incomum que advogados, defendendo clientes acusados de estupro, procurem limpar a barra dos réus tentando, de forma direta ou indireta, imputar uma parcela da culpa pelo delito às vítimas, ao argumento de que elas teriam “provocado” o criminoso por causa do comprimento de sua saia, de sua vida sexual pregressa ou de sua conduta social. E muitos juízes, infelizmente, ainda acatam esse tipo defesa.
Não é difícil perceber como essas normas, que caíram por terra há pouco tempo, ajudaram a perpetuar em nossa cultura noções preconceituosas preexistentes, que endossavam, em última análise, diversos tipos de violência contra as mulheres. Um homem que batia em sua companheira era, geralmente, visto como, no máximo um ”destemperado”. O poder absoluto conferido aos homens sobre as mulheres ao longo de nossa história, endossado até mesmo por nosso sistema legal e pelo judiciário, ajudaram a sedimentar uma desigualdade de fato entre homens e mulheres que nem a Constituição de 1988, que concedia a homens e mulheres direitos iguais no âmbito familiar, foi capaz de derrubar.
Em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha que, com o intuito de tentar remediar a desastrosa situação endossada por um conjunto de leis e práticas anteriores, concedeu um estatuto especial e mais rigoroso à violência doméstica cometida no âmbito doméstico e familiar. A partir de então, uma série de garantias processuais e assistenciais passou a ser oferecida para a mulher que procurasse o Estado para se proteger de agressores tão íntimos e tão poderosos quanto maridos, ex-maridos, companheiros e namorados.
Porém, seguindo ainda a máxima de privatização da violência doméstica, o Estado ainda se negava a “meter a colher” em brigas entre casais. O Ministério Público, segundo a dinâmica da Lei Maria da Penha, originalmente, só poderia processar os agressores se a vítima apresentasse queixa e, além disso, concordasse em manter de pé a sua pretensão acusatória. O resultado era previsível: como muitas das mulheres que procuram a justiça nesse caso ainda são economicamente ou emocionalmente dependentes dos maridos ou companheiros e como, além disso, muitas acreditaram piamente na capacidade de recuperação dos agressores, a maior parte das representações acabava sendo retiradas pelas vítimas. Algumas vezes, essas mesmas vítimas que perdoaram e deram outra chance, acabaram mortas.
Apenas em fevereiro de 2012 o Supremo Tribunal Federal posicionou-se sobre a questão de forma veemente, passando a permitir que o processo decorrente de agressões domésticas e familiares abarcados pela Lei Maria da Penha independesse, por completo, da vontade da vítima em proceder com o feito. A partir do ano passado, não somente qualquer pessoa passou a ser parte legítima para denunciar às autoridades uma agressão de que tenha notícia, como tornou-se vedado à vítima retirar as acusações. Isso, obviamente, não é o bastante para que deixemos de considerar a agressão doméstica como algo natural mas é, na verdade, o mínimo que nossa corte suprema poderia fazer para ajudar a combater um problema tão sério e com raízes tão profundas.
Em suma, o Supremo Tribunal Federal deu um importante passo para diminuir a impunidade nos casos de violência de gênero e, tudo que ele fez, em última análise, foi afirmar o óbvio: violência de gênero não é uma questão de roupa suja a ser lavada em casa, mas um problema social grave, que diz respeito a todos os brasileiros.
Ou seja, em briga de marido e mulher, sinta-se a vontade para meter a colher. A sua atitude pode salvar vidas.
P.S. Deixo a história que comecei a contar em aberto. Pode ser que você nunca mais ouça falar do casal que brigou na garagem, como também é possível que, dias depois, seu sono seja interrompido por sirenes de viaturas policiais. Vale a pena arriscar?
** Pedro Munhoz (@pedromunhoz5) advogado e historiador. Escreve no Bhaz às quartas-feiras.

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