sábado, 8 de junho de 2013

O Estatuto da Indignidade Feminina

O Estatuto da Indignidade Feminina

Roberto Tardelli - Promotor de Justiça

O Brasil está atravessando uma fase difícil. Não me refiro à economia, que nunca esteve bem (meus pais contavam que, quando nasci, “ninguém tinha emprego”). Não, não me refiro ao futebol, que já foi bom, era bom, até que os campinhos de bairro foram substituídos pelas “escolinhas de futebol”, com seus profexores e esquemas táticos, seus volantes e zagueirões. Vamos dar um vexamão na Copa, mas estamos preparados, estamos psicologicamente preparados para que os burros dêem n’água. Nada disso, o Brasil atravessa um duro momento de intolerância.

Estamos raivosos, estamos acanalhadamente sem solidariedade, sem compaixão, fazemos passeatas pela paz estranhíssimas em que pedimos pena, cadeia, prisão, prisão para todos os pretos, prisão para todos os que não forem coxinhas e não torcerem comportadamente no Maracanã ridiculamente burocrático.


O Brasil perdeu sua capacidade de sorrir. Uma madame no FANTÁSTICO fica cagando regras a miserentos vendedores ambulantes de praias, que se torram num sol maluco e vivem na mais completa miséria. Essa madame manda que eles se comportem. Os pretos, todos os ambulantes eram pretos. 


Nesse ambiente, veio para nosso espanto o Projeto de Lei 478/2007, que “Dispõe sobre a assistência à mãe e ao filho gerado em decorrência de estupro”.


Vale transcrever:


“ O Congresso Nacional decreta:


Art. 1º Os crimes de estupro terão investigação e persecução penais prioritárias.


Art. 2º Na hipótese de estupro devidamente comprovado e reconhecido em processo judicial, com sentença transitada em julgado, de que tenha resultado gravidez, deverá o Poder Público:


I – colocar gratuitamente à disposição da mulher toda assistência social, psicológica, pré-natal e por ocasião do parto e puerpério;


II – orientar e encaminhar, através da Defensoria Pública, os procedimentos de adoção, se assim for a vontade da mãe;


III – conceder à mãe que registre o recém nascido como seu e assuma o pátrio poder o benefício mensal de um salário mínimo para reverter em assistência à criança até que complete dezoito anos.


Art. 3º O pagamento será efetuado pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, com recursos oriundos do Fundo Nacional de Amparo à Criança e ao Adolescente.


Art. 4º A fraude engendrada para caracterizar o estupro, para qualquer finalidade, será punida com reclusão de um a quatro anos e multa, sem prejuízo da devolução da importância recebida de má-fé, corrigida monetariamente.


Art. 5º As delegacias de polícia ficam obrigadas a informar às vítimas de estupro os direitos assegurados por esta lei, bem como as penalidades previstas em caso de fraude.


Art. 6º Esta lei entra em vigor no prazo de noventa dias a partir da data de sua publicação.”

O projeto é um horror em todos seus aspectos. Primeiro, sujeita ao reconhecimento do estupro apenas após sentença transitada em julgado, algo a demorar anos e anos, malandramente, além de fazê-lo porque sempre se partirá do pressuposto que a mulher mentiu, o trânsito em julgado (repito, a levar, dez anos, por exemplo) existe como direito do estuprador, diante da mentira da mulher, diante de sua dissimulação, diante do mau-caratismo feminino, que exigirá que todas as instâncias do Poder Judiciário sejam percorridas para que, somente então, seja reconhecido o estupro, que somente será possível reconhecer se e quando houver a identificação do agressor sexual.


Para dizer o mínimo, pavoroso.


Mas, piora. Ele mercantiliza a gravidez decorrente de estupro, oferecendo uma bolsa-estupro, até os dezoito anos da criança, nascida decorrente da violação sexual. Marcada, vendida, trocada. A troca é oferecida pela lei.


E arremata: para a mulher que mentir, para evitar a “Indústria do estupro”, pena, cadeia, de um a quatro anos. Reclusão.


Esse Projeto se engancha perfeitamente no que cria o ESTATUTO DO NASCITURO, Projeto de Lei 478/2007, que retira da mulher qualquer possibilidade sobre a disposição de seu corpo, criando situações jurídicas extremamente embaraçosas, que sequer ao legislador de 1916 tocou fazer. O Estatuto retrocede um século no atraso, na tirania, no rebaixamento da cidadania feminina.


É o Brasil da intolerância, é o Brasil do mercantilismo, o Brasil sem cidadania, o Brasil-coxinha, o Brasil engomado e perfilado.


Nem os militares imaginariam isso.


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