domingo, 7 de julho de 2013

"Então fui e gritei: quem for contra o aumento dá um pulinho!” , socialite que há anos não pisa em metrô

"Então fui e gritei: quem for contra o aumento dá um pulinho!” , socialite que há anos não pisa em metrô (ônibus, então, nem pensar)

Enquanto isso, nos Jardins...

 Rosângela Lyra administra o luxo, sem deixar de ouvir o clamor das ruas

por William Vieira  - Carta Capital

Rosângela Lyra
No reino do consumo de luxo ao redor da Rua Oscar Freire, Rosângela Lyra é a rainha
Às 8 horas da noite da terça-feira 18, São Paulo ardia com os protestos contra o aumento das passagens, inclusive na mesma Avenida Brigadeiro Faria Lima onde, metros à frente, carros importados deixavam as mulheres mais elegantes (e ricas) da cidade. A partir da entrada do Museu da Casa Brasileira, porém, a deferência dos seguranças e o loungepasteurizado anunciavam, porém, uma ilha segura, povoada por longos e tailleurs, sapatos e bolsas de grife a serpentear atrás de Rosângela Lyra. Pois se tantos ícones do jetsetpaulistano se arriscaram a sair “no meio da bagunça” foi para prestigiar quem decide qual Dior todas vão usar – a mesma mulher que lhes afaga a consciência ao levar suas roupas e a palavra de Deus aos pobres e ainda acha tempo para representá-los (os ricos), cuidar de suas chagas urbanas e aconselhá-los sobre como e onde gastar seu dinheiro.
Flashes e flûtes à parte, todos estavam ali para agradecer por mais um serviço da “prefeitinha” da Oscar Freire. No caso, o guia Jardins & Afins, com suas 328 páginas de dicas de compras e serviços assinadas por Lyra e seus “curadores” como Glória Kalil. “Os Jardins têm nela um suporte”, diz a estilista, Chandon borbulhando na mão. “É ótimo ter um interlocutor acessível e eficiente como ela.” Exemplo. “Um dia achei que tinha muito lixo na Oscar Freyre, um horror. Liguei para a Rosângela e ela imediatamente resolveu.” Outro gole e Glorinha define o papel de Lyra para o bairro. “Pra gente, ela é uma vereadora, mas sem o ônus da corrupção e da inatingibilidade. É quase nossa porta-bandeira, e ainda vestida de Dior.”
Do alto dos 20 centímetros das botas Dior, o 1,74 metro de altura (coberto, claro, pela mesma grife) parece ainda mais altivo. Em cinco minutos a presidente da marca no Brasil se curva para beijar Solange Medina e Bete Arbaitman,  acena para um grupo de engravatados e, com destreza, some de uma roda de socialites empunhando pastéis para emergir no meio de um buquê de empresárias da moda. Anedotas sobre os Jardins acompanham as fotos delas no telão. “Linda!”, diz Lyra. Ela dá entrevistas à tevê. Autografa guias para uma fila de senhoras. Como se pairasse, soberana, sobre o pequeno reino de consumo a gravitar em torno da Oscar Freire. Um paraíso de luxo, glamour e paz, enredado pelas avenidas Paulista, Rebouças, Brigadeiro Luís Antônio, Juscelino Kubitschek e Marginal Pinheiros – ao menos nos Jardins imaginários do mapa anexo ao guia.
Explicar como essa carioca virou a conselheira dos ricos paulistanos demanda uma genealogia da fé nos negócios e na religião. “Sou da época em que moda era o marido abrir uma butique pra esposa parar de encher”, diz ela, uma contadora de histórias tão versada na Bíblia (que cita volta e meia) como na história do luxo nacional. Quando entrou para a Dior, 28 anos atrás, em plena economia fechada, aprendeu a transformar moldes europeus e tecidos locais em grife. O que explica seu jogo de cintura e a intimidade com a elite. Em 2001 virou “católica apostólica romana”. Para as más línguas, graças à filha, então namorada do jogador Kaká e pastora evangélica. Os embates foram bíblicos. “Eu amo Nossa Senhora e os evangélicos têm implicância com ela”, afirma. Terços e imagens da Virgem povoam sua casa. “Mas, fora a ‘questão marial’, somos íntimas.” Foi uma vizinha quem a chamou para Deus. Lyra mora no Itaim Bibi, ao lado dos Jardins, região mais católica da cidade. “Eu tinha uma Bíblia em casa, cheia de pó. Daí fui chamada para um grupo de oração. Amei.”
E partiu para a ação. “Sabe aqueles ‘tercinhos’ nos carros? Eu que fiz. Imprimi 10 mil e colei, de joelhos.” Distribuiu ainda 10 mil folhetos com temas bíblicos espinhosos. E convenceu socialites a encampar o movimento ABCD (Amigas de Bom Coração Desapegadas) e doar 1,2 mil peças de grife para um bazar em prol da Aliança de Misericórdia. Também promove jantares beneficentes. Mas não circula só entre os bem-aventurados do bolso. Qual uma Santa Perpétua dos Jardins, participa de “vigílias” religiosas no Centro. “Os moradores de rua querem ser olhados nos olhos”, garante. “Até falei inglês com eles.”
Não é um paradoxo passar o dia na venda de itens de luxo para meia dúzia de endinheirados e a noite a ajudar um exército de desamparados em andrajos – entre fomentar o consumo para poucos e a ajuda aos que nada têm? “Ela faz  a ponte entre esses mundos”, filosofa a mãe, Fernanda.  “Com Deus como suporte emocional, ela transita muito bem entre o lado material e o espiritual.” A filha concorda. “Já saí da Dior e fui direto pro Anhangabaú. São dois extremos. Mas neles encontro o equilíbrio.”
Fluente nesse pragmatismo influenciado por Deus, Rosângela Lyra quis ajudar os seus. Em 2004, a Oscar Freire foi eleita a oitava região mais luxuosa do mundo. “Mas era feia, quebrada, uma tristeza”, suspira. “Daí decidi revitalizar a região eu mesma. E criei a Alof.” A sigla responde pela Associação de Lojistas da Oscar Freire. Em sua sede, nos Jardins, na cabeceira de uma comprida mesa de reuniões, ela conta como convenceu empresários a abrir as carteiras e a prefeitura a deixar a burocracia de lado para aplicar “a primeira PPP da história deste país”. Os fios foram enterrados, as calçadas refeitas e mobiliários urbanos  instalados. “Conseguimos a operação delegada, resolver o lixo. A gente não, né? Eu.”  O entorno virou um “oásis”. E a socialite caiu de vez nas graças da elite paulistana.
“As pessoas me ligavam o tempo todo. Ai, onde lavo meu casaco de couro, onde emolduro meu quadro. Alguns são tão conservadores que só comem no mesmo restaurante, o mesmo prato. Com tantos endereços incríveis aqui!” Para sanar as carências dos desconhecedores da (parte da) cidade que habitam, ela criou a própria editora e o próprio guia. “Dizem: ah, é um guia elitista. Não é. Tem até a Vila Olímpia. É democrático.” Pausa. “Quer dizer, democrático pra quem tem bom gosto.”
No lançamento da publicação, tal democracia assustou mais que os protestos nas ruas. “Não conta pra ninguém, mas não comprei o guia”, dizia, sentada num canto do salão, a desiludida Ivete Giorgetti. Sócia do Clube Paulistano e habitué dos Jardins, apesar de morar no Paraíso (o bairro com esse nome), ela esperava dicas exclusivas. “E não isso – olha, gente, Almanara! Parece as Páginas Amarelas.” Mas a maioria dos presentes, fãs incondicionais de Lyra, elogiou a audácia editorial. “Como não gostar dessa mulher, gente?”, gritava a socialite Ana Cristina Wald. “Ouve. Estava eu em casa, aqui na Faria Lima, quando decido ver o que era aquela zona.” Eram os protestos de segunda-feira. “Desço e, no meio da passeata, com quem dou de cara? Com a elegantérrima Rosângela Lyra defendendo os pobres.”
Lyra sorri com modéstia. “Se o tema são valores, justiça, estou dentro. Então fui e gritei: quem for contra o aumento dá um pulinho!” Pois não se pode acusá-la de alienação por lançar um guia de luxo no auge dos protestos populares, iniciados, dizem, por  20 centavos. Verdade, há anos ela não pisa em metrô (ônibus, então, nem pensar). Mas, graças a ela, parte do 1% mais rico do País recebeu, ao comprar o guia, escondido entre as páginas de propaganda, um inédito mapa do sistema de transporte metropolitano de São Paulo.
Cidade luz. “Imaginem a minha surpresa ao perceber que São Paulo", diz Lyra na introdução de seu guia, "dona de esfuziante vigor econômico, de uma multicromática palheta social  (...) – não tinha um guia à altura de sua grandeza."
Cão fino. Na seção "Au Au" há desde pet shop com “hidratação com vinhoterapia, perfumes com notas naturais e pet grooming” a uma rotisseria que prepara “pratos gourmet e dietas personalizadas” criadas “por uma chef de cozinha”. Tem ainda agência matrimonial canina e um crematório, “para aqueles que acreditam que seu pet é um membro da família”.
Roteiro básico. Para um dia em São Paulo, Lyra sugere um café da manhã na Cristallo”, seguido por uma “caminhada pelo Quadrilátero de Charme". Dica: Aceite alegremente a tentação das compras a céu aberto.” Segue um  almoço na Rodeio e uma tarde no Masp, “afinal, não é qualquer museu do mundo que tem Picasso, Van Gogh, Renoir...” . Café e chocolate na Oscar Freire, um jantar no Gero e um drink no Alucci Alucci completam o passeio. Total, fora as compras: R$ 700.
Prioridade. Entre as seis opções de lojas para comprar uniformes para empregados domésticos, uma delas garante: “utiliza tecidos que não agridem o meio ambiente”.

.

0 comentários: