domingo, 7 de julho de 2013

Maria da Penha, Luana Piovani e todas nós

Maria da Penha, Luana Piovani e todas nós 

Desembargador diz que Lei não se aplica à atriz porque Luana não é uma mulher "em situação de vulnerabilidade". Essa categorização é perigosa.

por Nádia Lapa

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Foto postada pela atriz em seu instagram
Conheci Maria da Penha quando cobria um evento. Eu não era feminista militante, mal conhecia a íntegra da lei batizada em sua homenagem, mas sabia da sua história. Fiquei emocionada ao entrevistá-la por poucos momentos. Havia muita gente em volta dela, e fazer duas ou três perguntas era o máximo que conseguiria. Fiz. E fiquei com vontade de voltar lá, agradecê-la por tudo e escrever muito sobre o trabalho desta mulher extraordinária.
Maria da Penha dá nome à lei de violência doméstica porque seu caso é emblemático. O ex-marido atirou com arma de fogo contra ela, e em outra ocasião eletrocutou-a. Como resultado, Maria da Penha ficou paraplégica. O episódio ficou conhecido internacionalmente e, anos mais tarde e uma série de estudos sobre violência doméstica concluídos, foi aprovada a Lei 11.340/2006.
Entre as mudanças, há medidas protetivas para a vítima, como a limitação da "aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor". Parece coisa de filme, mas é necessário: agressores costumam continuar amedrontando e ameaçando suas vítimas, para que estas desistam das ações penais (e vários, infelizmente, assassinam as mulheres).
A lei também traz outra restrição importante. Os crimes de violência doméstica não podem ser julgados pelos juizados especiais, em que a pena pode ser substituída por multa. Assim, o agressor numa relação doméstica tem punição mais pesada, porque a motivação do crime é diferente, bem como as consequências do ato para os laços familiares.
Nem todos os crimes cometidos contra mulheres se enquadram na Lei Maria da Penha. A lei é bastante clara:
Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. (grifo meu)
Logo, caso eu seja agredida por um desconhecido na rua, o crime não se enquadraria na Lei Maria da Penha, posto que não tenho relação íntima com o agressor. Mas até o início desta semana eu estava tranquila sobre a aplicação da lei em episódios em que o agressor (ou agressora) fosse alguém com quem eu me relacionasse (e não precisa ser relação de amor romântico; podem ser irmãos, pais, parentes).
O caso Luana Piovani
Mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na mesma semana em que o relatório final da CPMI de violência contra a mulher foi aprovado, retrocedeu e apagou um problema histórico, ao decidir que Dado Dolabella não deveria ser enquadrado na Maria da Penha na agressão cometida contra sua ex-namorada, a atriz Luana Piovani.
Julgando um recurso impetrado pelo advogado do réu, o desembargador Sidney Rosa da Silva entendeu que Luana Piovani "e, não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade. É público e notório que a indicada vítima nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem".
O desembargador criou uma ficção jurídica, já que a lei não faz essa diferença. Eis o artigo 2º da Lei Maria da Penha: "Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.".
Logo, não existe essa figura de que a mulher rica não sofre violência de gênero. A violência decorre do fato de ela ser mulher. Muitas mulheres são oprimidas também por outras questões além do gênero, como raça, etnia e classe. Mas a Lei Maria da Penha não veio salvaguardar tão somente a mulher pobre, mas sim todas as mulheres.
Esta categorização proposta pelo desembargador é perigosa, pois apaga a violência doméstica que acontece em qualquer classe social. Ao menosprezar a agressão sofrida por uma mulher "independente", o julgador reitera aquele velho preconceito de que a violência tem a ver com classe. E não tem. A advogada Camilla de Magalhães Gomes, em post publicado no Blogueiras Feministas, analisa o caso, e diz o seguinte a respeito da não consideração de Luana Piovani como "merecedora" da aplicação da Lei Maria da Penha: "Mas mais do que isso, há um erro em considerar que uma mulher com essas características não estaria sujeita à violência de gênero no âmbito doméstico. A violência, o machismo, o patriarcado nunca eximiram a mulher livre, independente, autônoma. “Não ser subjugada” nunca foi garantia de não sofrer violência por parte de pessoas que agem, conscientemente ou não, a partir do machismo".
O desembargador, cujo entendimento foi seguido por dois colegas (e rejeitado por duas desembargadoras), diz que a Lei Maria da Penha não pode ser aplicada a "qualquer caso que envolva o gênero mulher, indistintamente". De fato. Mas se a violência ocorre numa relação de afeto, a lei deve ser aplicada.
Não faz diferença também se a agressão ocorreu dentro do domicílio ou não. Afinal, inúmeras mulheres são agredidas no local de trabalho, onde o parceiro vai procurá-la, ou mesmo nas ruas, festas de família, faculdade.
O recado que fica
Dado Dolabella, ao contrário do que tem declarado à imprensa, não foi absolvido. Na verdade, houve apenas a mudança de vara criminal onde o processo será julgado (lembrando que ele foi condenado anteriormente a 2 anos e 9 meses em regime aberto).
Mas a decisão desta semana manda vários recados à sociedade. O primeiro deles, mais óbvio, é que existem mulheres "merecedoras" do que lhes acontece. O réu fez questão de repetir em entrevistas nesta semana que Luana Piovani estaria bêbada no momento da agressão e que se recusava a ir embora da festa na qual se encontravam. Com isso, Dado pinta uma mulher numa situação que a sociedade, de maneira hipócrita, reprova.
Ele convenientemente esquece de mencionar que, ao defender Luana, a camareira Esmeralda Honório também foi agredida pelo ator, e que ele foi condenado ao pagamento de R$ 40 mil a título de danos morais.
Outra mensagem passada pelo acórdão judicial, bem grave, é de que nada adianta procurar a justiça. Quando Luana Piovani denunciou o caso, a opinião pública foi contra a atitude da atriz. Ela falou que a denúncia era necessária, e que todas as mulheres deviam fazer o mesmo.
Agora, com os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negando o enquadramento da agressão na Lei Maria da Penha, fica parecendo que não, não resolve nada denunciar. "Afinal, se nem a Luana Piovani conseguiu, quem sou eu para conseguir?", pensarão muitas mulheres.
E como culpá-las, se as mensagens que recebemos de todos os lados é de o machismo segue vencendo?

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