terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

E se Woody Allen fosse mulher?

E se Woody Allen fosse mulher?

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Atos pessoais bizarros não desmerecem obra genial do diretor. Mas teremos todos – e todas… – direito a esta distinção?   
Por Marília Moschkovick Imagem: Antonio Montanaro
Uma história conhecida já há algum tempo por quem se liga em fofocas do meio cinematográfico (ou por quem milita pelos direitos sexuais das mulheres) veio à tona de maneira bombástica no fim da semana que passou: Dylan Farrow, filha adotiva de Woody Allen, falou abertamente sobre como teria sido abusada sexualmente pelo cineasta aos sete anos de idade. A denúncia aberta (que antes se restingia a certos círculos sociais) foi motivada, segundo ela, pela premiação de Allen na última edição do Globo de Ouro.
Há muito o que comentar sobre o caso. A questão que me tem sido colocada pelos leitores e leitoras da coluna, porém, é a seguinte: devemos parar de apreciar a obra de Woody Allen? Essa pergunta parece simples, mas evoca uma segunda indagação importante: teríamos a mesma reação se Woody Allen fosse mulher?
Pessoalmente sempre fui muito fã dos filmes de Allen. Descobri seu trabalho na adolescência, com “Trapaceiros” (Small Time Crooks, 2000), e cheguei no auge do meu amor por seus filmes quase dez anos mais tarde quando assisti “Tudo pode dar certo” (Whatever Works, 2009). Assisti quase tudo do diretor entre um lançamento e outro. O fato, pra mim, é que nunca liguei para a vida pessoal do diretor – mas também nunca vi com bons olhos, talvez por puro moralismo meu, o casamento dele com Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow (mãe de Dylan, que está denunciando o cineasta no momento).
Igualmente, já havia ouvido horrores de Lars Von Trier, Roman Polanski e Charles Chaplin, três outros grandes gênios do cinema de que sempre gostei, assisti, acompanhei, e em cujas obras submergi para tentar entender o que se dizia ali. A obra de Allen não muda com a notícia. Continua sendo, sim, genial. Continua tendo transformado o cinema e a cultura pop. Continuam sendo bons roteiros, atuações hilárias, direções incríveis. Assim como a obra de Chaplin não é menos importante para o cinema (nem pior, nem menos engraçada, nem menos deliciosa de assistir).
Pelo jeito Hollywood e o meio cinematográfico concordam comigo, já que nenhum desses diretores sofreu qualquer tipo de punição profissional ou moral por erros cometidos na vida pessoal ou familiar. Por que?
É difícil comparar diretores homens e diretoras mulheres porque simplesmente não há mulheres dirigindo filmes do calibre das obras desses diretores que mencionei. A atriz Geena Davis até criou o Instituto Geen Davis sobre Gênero na Mídia, que monitora os efeitos do machismo e a desigualdade de gênero na TV e no cinema nos EUA. Sendo assim, tomo como exemplo algumas atrizes.
Whitney Houston é um dos maiores exemplos de quem teve sua carreira completamente estragada por erros que cometeu em sua vida pessoal – ou, melhor dizendo, pela reação da indústria cinematográfica e da mídia de massas a tais erros. Além dela, outros exemplos mais recentes são Lindsay Lohan e Katherine Heigl. Se nos esforçarmos um pouco, com certeza conseguiremos expandir essa lista em dezenas de nomes ao longo da história de Hollywood.
Deixo Chaplin de lado para que ninguém venha com argumentos de que “os tempos eram outros”: Por que o mesmo não acontece com Woody Allen, Lars Von Trier ou Roman Polanski?
A resposta é simples: privilégio masculino.
Não é nenhum segredo que as mulheres são julgadas com critérios mais rígidos do que os homens em todas as profissões e espaços de trabalho (uma passada rápida no Google Acadêmico buscando artigos sobre desigualdades de gênero na carreira e no mercado de trabalho é recomendável para quem ainda duvida). Quando se trata de setores em que quase não há mulheres em posições de poder, esse julgamento diferenciado é ainda mais forte.
Nesse jogo, há um critério aplicado quase exclusivamente para as mulheres, que é ter uma vida pessoal moralmente impecável segundo o pensamento dominante (que é machista e conservador, claro). As mulheres que são excelentes profissionalmente mas são consideradas moralmente reprováveis frequentemente têm suas carreiras boicotadas – e não apenas por homens. Estruturalmente, nossa sociedade exige que as mulheres, para chegarem ao mesmo lugar social dos homens, sejam muito superiores em termos de suas classificações e – tcharam! – de suas vidas pessoais.
Esse fenômeno do machismo estrutural faz com que as mulheres sejam excluídas de espaços profissionais de todo e qualquer tipo. Quando olhamos grandes empresas, desenvolvimento tecnológico, carreira científica, esse efeito é evidente. Na política também: quantos votos Marta Suplicy perdeu em São Paulo simplesmente porque se divorciou de Eduardo?
A saída, porém, não me parece ser replicar o comportamento moralista usado contra as mulheres para também os homens. Pelo contrário! De moralismo o mundo está cheio. Penso que a produção profissional de qualquer pessoa deva ser julgada, na medida do possível, por suas qualidades, e não pela vida pessoal ou por comportamentos que, individualmente, possamos julgar reprováveis.
É impossível esquecer, porém, que essa dissociação entre vida pessoal e produção profissional precisa ser feita com muito mais urgência e com muito mais força (com a força de políticas públicas, de preferência) especificamente para mulheres e outras pessoas de grupos socialmente oprimidos (como a população negra, por exemplo, que sofre com o mesmo tipo de julgamento diferenciado).
Não é, nem jamais será a mesma coisa reprovar individualmente o comportamento de Woody Allen ou de Chaplin, gênios bem estabelecidos no mercado do cinema: suas carreiras não foram destruídas por nada do que fizeram em suas vidas pessoais, e isso já é prova suficiente do privilégio masculino de que puderam gozar numa indústria completamente machista. Fossem mulheres, não teriam passado do primeiro filme. Se é que teriam conseguido se tornar diretoras.

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