quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

"Tá com dó? Leva pra casa"

"Tá com dó? Leva pra casa" 

Com os clichês de sempre, o Brasil que relincha tenta justificar, em horário nobre, a ação de quem espancou e amarrou garoto nu em um poste no Rio

Matheus Pichonelli - Carta Capital


Menino agredido
Jovem foi amarrado em poste no Rio após ser espancado; para o senso comum, é assim que deixaremos de ser o "país da impunidade"
No fim do ano passado, três presidiários do Maranhão foram degolados por grupos rivais diante de uma câmera de celular. Divulgado nas redes, o vídeo chocou a comunidade internacional. Era o retrato de um Brasil onde um presidiário é morto a cada dois dias de forma violenta em suas celas. Este país pode ser tudo, menos um paraíso para bandidos.
Atualmente, existe um déficit de 200 mil vagas no sistema penitenciário brasileiro. São 563.723 presos para 363.520 vagas. A lei da física segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo espaço não vale para quem está condenado pela vida antes da própria Justiça, morosa a julgar boa de seus enjaulados, muitos deles com mais tempo de detenção do que de condenação.
Diante do quadro, ter pena ou não dos condenados chega a ser infrutífero. Piedade não resolve a tragédia; a racionalidade, sim. O país da impunidade tem mais presos do que sua capacidade permite; o país em que brancos e negros cometem exatamente os mesmos crimes, uns são maioria nas cadeias e outros, nas faculdades. Os segundos, não importam as atrocidades cometidas na vida pública ou privadas, serão chamados de cidadãos de bem; os primeiros terão sorte se não forem degolados. Mas, de acordo com o relato do senso comum dos almoços de domingo, os primeiros estão no paraíso, o paraíso dos bandidos do país da impunidade; os segundos, no inferno. De vez em quando, suas carteiras são surrupiadas, e a Terceira Guerra será proclamada. Os segundos, quando pegos, são enquadrados na lei que os primeiros fingem desconhecer. Se tiverem sorte. Se não, ouvirão gritos, tapa na cara de policial, de delegado, da vítima, será amarrado em postes ou vai mofar na cadeia até que alguém, com pena ou não da sua situação, lembre de vez em quando que uma vida vale mais que um iPod roubado. Ou uma carteira velha de cartões desbloqueados.
Esta é a vida real. Mas, no discurso moralizante, céu e inferno estão em situações inversas. Este discurso antes estava restrito ao ambiente familiar. O xucro falava atrocidades, se enfurecia, ficava vermelho, ameaçava infarto mas, ao fim do jantar, servia-se do café e se acalmava nos primeiros segundos da novela. Voltava a hibernar em paz sobre o sofá com uma baba pastosa no canto da boca. Depois o xucro descobriu a internet e se transformou em comentarista oficial de portais. É lá que ele transpõe tudo o que sabe sobre leis, direitos de ir e vir, humanidade e segurança pública, sempre sob o lema “bandido bom é bandido morto” e suas variações: “direitos humanos são direitos dos manos”, “direitos humanos para humanos direitos”, “tá com pena do bandido, leva pra casa”, “estatuto de criança e adolescente protege o jovem bandido”, etc.
A sofisticação de seu raciocínio denota uma deficiência lógica e cognitiva. Lógica porque vê impunidade em presídios superlotados destinados a animais, não para humanos. E cognitiva porque confessa a incapacidade de reconhecer a humanidade no outro – o outro é sempre o “bandido”, mas também pode ser a “biscate”, o “drogado”, o “mano”, o “playboy” e até o “quem tem dó de bandido”. Para ele, não há nada, nem carne nem osso nem sangue debaixo do rótulo: tudo é uma questão de senso de oportunidade. Daí a paranoia, daí a patologia. O conselheiro Aires, célebre personagem de Machado de Assis, é quem costumava dizer: “a ocasião faz o furto, não o ladrão; o ladrão nasce feito”.
Esse comentarista de portal, também chamado de “sommelier de pena”, conseguiu emprego. Agora é comentarista profissional. Disposto a jogar no lixo anos de lutas históricas, direitos adquiridos e proteção humana pelo fato de pagar imposto demais em seus produtos eletrônicos (que ele associa à corrupção, ao estado de insegurança, à impunidade, à ação de justiceiros e à necessidade do retorno ao estado de natureza), migrou o comentário de efeito retórico que apavorava os filhos (ou os pais, pois muitos mal saíram da fralda) para a internet e até para a tevê. Ali, seus delírios são reproduzidos como sentença definitiva. Por exemplo. Um menino, negro, é amarrado ao poste pelo pescoço, com a trava de uma bicicleta, nu e com a orelha cortada, em meio a uma movimentada avenida do Rio de Janeiro. Nestes delírios midiáticos, não se cogita sequer a possibilidade de ele ser inocente. Até que prove o contrário, é o “trombadinha” que transformava a vida das pessoas de bem em um inferno naquele trecho da Cidade Maravilhosa. Não importa se na Carta de 1988 não consta o vexame e exposição públicos, com direito a mutilação, como meio de punir um crime antes de ser indiciado, denunciado, enquadrado, julgado e condenado.
Importa apenas o delírio.
Neste delírio, o inferno são os outros, e já que não inventaram uma capsula protetora para separar os que têm fome e os que não têm, resta esticar até o impossível a lógica de um argumento em partes desconectadas: “pagamos muitos impostos”, “a Justiça é morosa”, “vivemos no País da impunidade”, “a lei só protege bandidos”. E pronto: meia dúzia de clichês e embasamento mambembe e a salada está à mesa e os crimes, equiparados. É quando uma orelha decepada se torna menos grave que um suposto crime contra o patrimônio. O país que aplaude o justiçamento é o mesmo que ignora uma questão histórica: o açoite é causa, não consequência, da tragédia, e esta não foi abolida com o fim da escravidão.
Para quem tem a solução debaixo do braço, a História é para os fracos. Para quem tem pena de quem não merece pena. Pela lógica dos comentaristas profissionais de portais, a ação dos justiceiros está legitimada quando a “pena” que tolera o crime é eliminada. Se a moda pega, não vai ter mão para amarrar nem desamarrar uns aos outros: uns farão justiça contra quem rouba carteiras; outros, contra quem desejar a mulher do próximo; outros, contra quem compra ou vende produto pirata; outros, por subornar o guarda e fugir da multa; outros, por aceitarem propinas; outros, por fazerem vista grossa à venda ou consumo do crack. Se a lei não existe, tudo é permitido, e o Brasil se transformaria, assim, em uma grande Itaguaí (com o perdão, novamente, a Machado de Assis, que criou a cidade onde todos os habitantes, de diferentes graus de insanidade, foram parar no hospício no conto O Alienista).
Em algum momento da vida, todos passariam pelo educativo processo de purificação dos pecados, entre eles ter pena de quem não teve pena de quem não tem pena.
Nossa sede de justiça seria, assim, parte da paisagem: exposta à vista de todos, como a desfaçatez de quem perdeu a vergonha de relinchar em horário nobre.

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