domingo, 27 de julho de 2014

Pena de morte? Só que não.

Pena de morte? Só que não.

Por Neemias Moretti Prudente - Justificando

Diante da ocorrência de crimes de grande repercussão que abalam a sociedade e da impotência do Estado frente à criminalidade, ressuscitam vozes e projetos solicitando a aplicação da pena de morte entre nós. O tema é de abordagem complexa, polêmica e controversa.
Os partidários da supressão do homem sustentam que a presença da pena de morte na legislação teria por escopo de definitivamente banir ou diminuir o crescente índice de criminalidade em nosso país, além de desestimular homicídios, latrocínios, crimes sexuais violentos, sequestros etc.
Mas será que a pena de morte, como têm sido defendido por alguns setores da sociedade, seria a solução para os problemas de violência e da criminalidade, tal qual as estão sendo vivenciadas pela população brasileira?
Embora a pena de morte tenha sido aplicada desde os tempos bíblicos , com o advento do famoso livro Dei delitti e delle pene, de autoria de Cesare Beccaria (criminólogo italiano que viveu no século XVIII), houve profundas mudanças nas ciências criminais em todo o mundo. Nele, o autor propunha um sistema penal em que fosse abolida a tortura e outras penas desumanas, e em que fosse aplicada a proporcionalidade entre delito e pena. No capítulo XVI da obra, Beccaria expõe os motivos pelos quais afirma que a pena de morte não deve ser aplicada em um Estado que tenha um governo justo (segundo as ideias da época, um governo democrático). Esses motivos podem ser resumidos na seguinte afirmação: a pena de morte é ilegal, inútil, desnecessária e nociva.
Em alguns países como os Estados Unidos da América, a China e o Irã, a pena de morte continua a ser aplicada. A opinião publica (cerca de 2/3 dos americanos) diz ser favorável à pena de morte. Dos 38 Estados, tanto as condenações como as execuções, concentram-se geograficamente em menos de 20% dos condados ou municípios. Na maioria dos casos, os condenados são pessoas pobres, pertencentes a minorias raciais e foram representados no julgamento por advogados públicos ineptos. A China, segundo a Anistia Internacional, executou 1.770 detentos em 2005, cerca de 80% do total mundial naquele ano. Mas acredita-se que o número seja ainda maior. O Irã, segundo a Anistia Internacional, tem um dos maiores índices de execução no mundo.
Mas este quadro vem mudando, visto que a pena de morte anda perdendo sua força nos EUA e a um ligeiro retrocesso nas execuções publicas derivadas de sentenças condenatórias de aplicação da pena de morte.
As causas apontadas por promotores, advogados e juízes que criticam a pena de morte são: o surgimento de mais leis estaduais a determinar como pena máxima a prisão perpétua sem direito a liberdade condicional ou apelações, uma queda generalizada nos índices de criminalidade e a relutância de várias autoridades em levar a pena de morte à frente dados os altos custos de um processo deste. Mas, o motivo principal seria o temor de erros judiciais. Desde 1976, 123 pessoas saíram da fila de execuções após terem sido decretadas inocentes, 14 delas mediante teste de DNA.
Hodiernamente, a pena de morte desapareceu ou tende a desaparecer nos países mais civilizados do mundo, como na Alemanha, Grã-Bretanha, França, Portugal.
No Brasil, inúmeros políticos já apresentaram propostas de emenda no Congresso, com o intuito de institucionalizar a pena capital na ordem constitucional, através de plebiscitos e outras formas inócuas. Por aqui, mais de 80% da população acredita que penas mais severas reduziriam a criminalidade. Mais da metade (51%) apoia totalmente a prisão perpétua e 46% são favoráveis a pena de morte (Pesquisa CNI/Ibope, 2011). Isto mostra que vivemos atualmente na sociedade brasileira um ambiente propício para as intenções daqueles que visam instituir a pena de morte.
Felizmente a Constituição Federal de 1988 protege o direito a vida, conforme estabelecido no art. 5.º, caput, além de que prevê expressamente a impossibilidade da adoção da pena de morte no Brasil, a respeito preceitua:
Art. 5.º…: XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX.
Ainda, é vedado expressamente a possibilidade de emenda constitucional (e por consequência qualquer plebiscito ou consulta ao povo) que vise abolir os direitos e garantias individuais, pois estes direitos constituem clausulas pétreas , nesse sentido:
Art. 60 – A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4.º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
V- Os direitos e garantias individuais.
Ressalta-se também uma grande contradição. Ora, o Estado cria uma lei que diz que matar alguém é crime, sujeito as penas da lei. Crime este que em algumas modalidades é considerado hediondo (Lei 8.072/90). O assassinato legal pelo Estado é direito? Isto é realmente incoerente, há, pois, insuperável contradição axiológica.
No entanto, a pena de morte no Brasil poderá ser aplicada em tempo de guerra, que deverá ser declarada pelo Presidente da República, nos casos previstos em lei. O Código Penal Militar admite a aplicação da pena de morte quando forem praticados determinados crimes, como a espionagem, a traição, entre outros. A pena de morte será aplicada na modalidade de fuzilamento (art. 56).
De acordo com Zaffaroni e Pierangeli (p. 743):
… a guerra é o fracasso do direito, é um fenômeno que escapou ao direito. Frente a este    fenômeno, a legislação de guerra não faz mais do que prever algumas consequências a esta especial circunstância, dentre as quais cabe considerar a possibilidade de uma situação de inculpabilidade isto é, de inexigibilidade de outra conduta especialmente regrada, e frente a qual se encontra o exército como instituição de emergência.
Outro documento importante, que trata da pena de morte, é a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como “Pacto San José da Costa Rica”. Essa Convenção repudia a pena de morte, entre outras práticas, que desrespeitam a dignidade humana. O governo brasileiro reconheceu a citada Convenção em 1985 e foi ratificado pelo Congresso em 1992 (Decreto nº 678, de 6 de nov. de 1992).
O pacto impede o Estado signatário (entre eles o Brasil) de restabelecer o instituto da pena de morte:, ao prover no “art. 4.º – 3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.”
Essa Convenção só veio reforçar as garantias da dignidade social. A vida sempre foi o direito principal da sociedade, pois sem a vida, não haveria nem mesmo o direito. Através das convenções e tratados, a sociedade vem ao longo do tempo lutando e conquistando garantias e direitos essenciais para a sobrevivência coletiva. E mais, ao longo a sociedade vem abrindo caminho desbravando para uma vida digna, justa e humana. E hoje, como antes dito, temos a vida com o principal direito conquistado e vivemos o ápice do desenvolvimento dos direitos humanos (Souza).
A instituição da violência pelo Estado acarretaria um verdadeiro retrocesso histórico, sendo momentaneamente anulado todo resultado de uma luta milenar em prol da dignidade humana e dos direitos fundamentais.
Ainda mais. A pena capital é, no momento, inteiramente contrária às diretrizes cientificas, humanas e de política criminal que informam o Direito Penal e a Criminologia da atualidade. Por isso mesmo, é incompatível com a moderna finalidade ou função da pena, na legislação e na doutrina penal de nossos dias, qual seja, a recuperação ou ressocialização do criminoso.
Zaffaroni e Pierangeli (p. 743) se manifestam no sentido de que:
Para o atual horizonte de projeção do direito penal, a pena de morte fica fora do conceito de         pena. Vimos que no direito penal contemporâneo a pena tem como função preventiva especial   particular. A chamada “pena de morte” não cumpre qualquer função desta índole, mas      simplesmente a função de suprimir um homem, definitivos e irreversivelmente.
Grande problemática gira em torno dos meios de comunicação (mídia), que ao darem ênfase a violência e a insegurança pública, apontando medidas fortes, repressivas, para coibir e eliminar os violentos, levam os indivíduos, apoiados no medo em se tornarem vítimas de tais atos, a transformarem-se em defensores de medidas repressivas, em que se inclui a pena de morte. Uma vez que os próprios indivíduos manifestam-se a favor desta medida, o poder encontra a maneira de se afirmar como corretos, justos, democráticos e fundados na opinião da maioria (Souza, Filho, pp. 108-109).
Nesse sentido a pesquisa acima revela que o apoio à execução de criminosos pode ser circunstancial e emotivo. Citando um caso antigo, após o assassinato do menino João Hélio, de 6 anos, no Rio de Janeiro (RJ), 55% dos entrevistados mostraram-se favoráveis à pena capital. Já no levantamento realizado entre os dias 25 e 27 de março de 2008, somente 47% disseram que votariam a favor da adoção da pena.
Para Luis Flávio Borges D’urso (2007), a pena de morte:
… é tema de apelo fácil à emoção. Quando a sociedade esta comovida, quando a emoção social está de alguma forma manipulada ou estimulada, verificamos que a pena de morte ganha campo, adeptos, simpatizantes e defensores ferrenhos. Se fizéssemos um plebiscito para que o povo decidisse se teríamos ou não, no futuro no Brasil, a pena de morte, diante do impacto da notícia de algum eventual crime bárbaro, certamente o resultado do plebiscito seria favorável à implantação   da pena de morte.
Souza Filho (p. 107) afirma que caso venha a ser realizado um plebiscito sobre a pena de morte, é possível concluir que não seria difícil se obter o apoio favorável da população. Mas ressalta que disfarçado na ideia de uma consulta democrática, o plebiscito coloca nas mãos da população o poder de decisão sobre a instituição legal de ato bárbaro sobre pessoas humanas: O Estado retirar a vida de indivíduos sob o seu poder.
Porém, os membros da sociedade enganam a si mesmos, pois chegam a essa conclusão levados pela emoção e até mesmo por inexperiência, pelo fato de não terem vivido empiricamente num regime onde estivesse ativada em nosso ordenamento a pena capital, enfim os idealizadores da pena macabra e os que protestam por ela não estão pensando com a razão.
É uma ilusão, mesmo uma utopia pensar que a pena de morte elimina ou sequer reduz a criminalidade de uma nação, pois o pretenso efeito intimidativo da pena capital (tão ansiosamente esperado ao existir em uma codificação penal) não impede o criminoso de agir, falha nos países que a aplicam, pois nunca conseguiu acabar ou reduzir a criminalidade. O criminoso não pensa na ameaça da pena, na lei penal, ao planejar ou executar o seu delito, não deixa de executá-lo com receito de pena alguma.
Afora estes argumentos, a pena de morte esbarra na irreversibilidade do mal do erro judiciário, obstáculo intransponível, eis que torna a sanção irreparável, já que depois de executado não dá pra reparar o erro. E como fica isso?
Em nosso país, razão maior para que D. Pedro II não mais aplicasse, depois, da execução de Mota Coqueiro, em Sergipe, em 1855, e posteriormente verificando-se que era inocente da acusação de homicídio que fora praticado por outrem. Podemos também citar Frei Caneca, Tiradentes, Padre Tenório, que morreram a bel-prazer do Estado. Um dos mais dolorosos casos de erro judicial é o dos irmãos Naves, condenados por assassinato que jamais haviam perpetrado, mas admitido na polícia e em juízo, após dias e noites de tortura.
Nesse sentido, registra Daher, que a irrevogabilidade da pena de morte transforma o erro humano em erro desumano. Uma punição irreversível, mesmo que pudesse ser lógica e justificada moralmente, pressupõe um tribunal infalível e uma lei consciente (Rodrigues; p. 109), já que posteriormente verificado sua condição de inocente, não poderemos remediar em valor algum, a dor dos parentes que terão visto injustamente um ente querido ter sido condenado à uma sanção fatal e imutável.
Sendo assim, o que podemos esperar do sistema policial-judicial brasileiro, cujas características marcantes são a arbitrariedade, a morosidade, a onerosidade, o emperramento burocrático, a superlotação e até mesmo a corrupção tantas vezes denunciada, ignorada e parte integrante da realidade do Brasil?
A pena de morte seria mais um instrumento de discriminação social, tal como ocorre hoje com as prisões arbitrárias e averiguações feitas pela polícia nas ruas das metrópoles, onde prevalecem os preconceitos de raça, cor e classe social. A institucionalização de tal pena em nosso sistema jurídico atual seria seletivamente aplicada aos pobres, aos negros e aos desprovidos de fortuna, que não carecem de mais esta forma de perseguição (Marques, p. 52).
Os indivíduos ao defenderem a necessidade da pena de morte, estão defendendo a repressão de si próprios. O que torna mais trágico quando a manifestação parte das classes populares, uma vez que a medida repressiva visa, em primeiro lugar, a elas (Souza Filho, p. 110).
De acordo com pesquisas da “ONU” (Organizações das Nações Unidas) foi observado que nos países onde foi adotada a pena de morte, a criminalidade não diminuiu. Não existe comprovação científica de que a pena de morte alcança resultados concretos e positivos para a sociedade civil.
Realmente, fora algumas pesquisas localizadas, não temos conhecimento de estudos profundos que comprovem os efeitos concretos positivos da adoção da pena de morte/redução da criminalidade violenta. Por outro lado, se não existem estudos comprovando, também não conhecemos pesquisas que de forma científica comprovem o contrário (Calhau; 2007).
Também, a pena de morte, apresenta outros problemas operacionais, como, qual o membro do MP pediria a aplicação da pena de morte? Que corpo de jurado seria capaz de aplicá-la? O STF, após recursos, manterá a questão? Como seria a execução? Qual meio seria utilizado? Quem assumiria a função de carrasco? E quando ocorrer erro judiciário? Como se percebe a questão da pena capital traz grandes problemas.
O Estado Democrático de Direito deve agir de forma a responder as verdadeiras necessidades do homem, centro e motor de nossos interesses.
Apesar do alto índice de aprovação junto à população, somos contrários à adoção da pena de morte, que apesar de ser inútil, desnecessária e nociva, também não trará resultados efetivos para a sociedade e é grande o risco de serem executados inocentes em caso da ocorrência de erros judiciários lato sensu (Poder Judiciário, MP, Polícia e Advocacia) em processos criminais. Se for adotada no Brasil provavelmente somente seria aplicada a população já estigmatizada pelo nosso sistema penal.
Dentre outras, cientificamente e juridicamente, o crime é devido a um complexo de fatores ou de condições individuais e culturais (causas biopsicossociais), e estes fatores que levam o homem ao crime que devem ser eliminados/tratados.
Se ainda não conseguimos atingir o elevado estágio do perdão incondicional a quem nos causa dor e sofrimento indizíveis, como bem nos ensinou Jesus Cristo, que ao menos não nos tornemos iguais ou até piores que nossos algozes, retribuindo a violência que nos é endereçada com a concretização de mais violência que, com certeza, em nada irá resolver para arrefecer a barbárie em vigor em nosso país.
 
Neemias Moretti Prudente, é Professor de Processo Penal da Escola na Magistratura do Paraná (EMAP) e de Legislação Penal Especial no Instituto Paranaense de Ensino (IPE). Assessor Jurídico do Ministério Público Federal (MPF/PR). Mestre e Especialista em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.

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