domingo, 31 de agosto de 2014

Sociedade de elite: o inimigo agora é outro

Sociedade de elite: o inimigo agora é outro

 cigar

Por Thiago M. Minagé e Jefferson de Carvalho Gomes


I – INTRODUÇÃO
Em tempos sombrios por conta de atitudes totalitárias e disseminação do discurso do ódio muito tem se discutido sobre a criação (melhor, eleição) de inimigos no direito penal. Ao longo da história os inimigos foram os mais diversos: Os hereges na idade média que eram condenados a arder nas fogueiras pelos julgadores da Inquisição; o proletariado com o advento da revolução industrial no fim do século XVIII, sobretudo no século XIX. No século XX os inimigos foram muitos: judeusalcoólatras, usuários de drogas, roqueiros, hippies e porque não atéfilósofos e pensadores. Já no século XXI com o boom da internet e o crescimento global da comunicação de massa, surgiram então os novos inimigos que primeiramente foram os talibãs (leia-se mulçumanos) após o atentando ao World Trade Center na cidade de Nova York em setembro de 2001 e mais recentemente no Brasil tivemos duas classes amplamente criminalizadas: A primeira foram os usuários de drogas e seus defensores através do uso do Capitão Nascimento e seus lamentáveis e deploráveis jargões expostos no filme Tropa de Elite e por fim, os manifestantes e defensores que vêm sendo criminalizados desde as revoltas populares surgidas em nosso país desde junho de 2013.
II – A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO
É certo que o conceito de inimigo é vasto e deságua em diversas vertentes e posições, porém, vamos nos ater tão somente ao conceito de inimigo trazido por Günther Jakobs e seu tão aclamado (infelizmente, por alguns que fique bem claro) Direito Penal do Inimigo que a nosso ver merece profundas críticas.
Jakobs na construção de seu pensamento cria duas classes destinatárias da norma: os cidadãos e os inimigos. Para o Autor, os cidadãos são destinatários de uma norma que lhes dá o direito a se restabelecer através de uma pena imposta pelo Estado, porém sendo mantido o seu status de pessoa e o papel de cidadão reconhecido pelo Direito[1]. Já o inimigo para Jakobs era o tipo de indivíduo que não merecia tratamento algum como pessoa. Jakobs com esta conceituação criava o direito para os bons e maus[2] sendo completamente incompatível e descabido no âmbito de um estado democrático de direito.
É certo que o processo de criminalização se dá por duas vias: primária e secundária[3]. Acriminalização primária ocorre quando os agentes políticos (representantes do povo) criam novas leis penais que incriminam determinada conduta, já a criminalização secundária é a aplicação da nova lei penal que criminaliza determinada conduta pelas agências policiais e judiciárias (Polícias, MP, Juízes), porém: Como se dá este processo criminalizante? Entendemos que este processo se dá por diversas formas e a mais recente e destruidora, é a criminalização via mídia em um movimento que podemos chamar de populismo penal midiático com o doce veneno do poder punitivo[4] e que entendemos ser conexo com os ensinamentos de Jakobs.
Com o pensamento de Jakobs sobre a existência de um direito penal do inimigo, abrimos uma brecha que entendemos ser deveras equivocada ainda mais sob a égide de um estado democrático de direito que é dividir a sociedade em bons e maus, afinal como se dá essa divisão? Quem define quem são os bons e os maus? Não resta dúvida que nosso sistema penal é amplamente seletivo e por mais que possa parecer balela (pelo menos é o que senso comum tenta fazer parecer) o sistema penal tem sim como clientela principal os pobres é só vermos hoje o perfil de nossos encarcerados e muitos desses são lá postos após grandes campanhas midiáticas.
Não tem jeito, em tempos onde pseudos juristas como apresentadores e comentaristas de tele jornais e o folclórico Capitão Nascimento são os doutrinadores do direito penal, não há que se pensar em um direito penal conforme à Constituição. Quem não se lembra dos jargões eternizados pelo personagem acima citado no filme Tropa de Elite 1 e 2 que foi até intitulado desuper-herói brasileiro[5] define bem o grande retrato criminalizante da grande mídia brasileira e que a nosso ver retrata bem o que Jakobs defendia com o seu direito penal do inimigo. Afinal, torturar e matar pessoas sumariamente, por elas serem usuárias ou até traficantes é ser herói ? Bom, pelo menos no Direito que nós estudamos não parece ser esse o caminho a ser seguido.
Vivemos em uma sociedade onde existe o discurso do bem vs. mal, onde os cidadãos são divididos entre bons e ruins muito disso encampado pela grande mídia que por vezes incita e promove a criação de discursos de ódio. Em tempos de democracia, sob a égide de nossa carta política de 1988, é inadmissível que aceitemos a propagação do direito penal do inimigo e aplaudamos os capitães Nascimento ou qualquer outra caricatura que promova o show dos horrores e defenda cada dia mais agressão aos “inimigos”.
Insistimos no emprego do termo inimigo pois o mesmo pode variar assim como as marés variam e aí entraremos em um exemplo mais contemporâneo não sem antes nos remetermos à história. Não é de hoje que a mídia possui grande força política perante a sociedade e logo, sendo os políticos representantes dessa sociedade, torna-se a mídia o grande veiculador da pauta criminalizante das agências políticas, onde, a melhor forma de se criminalizar uma conduta é coloca-la na na grande mídia e para melhor visualizarmos isso é só vermos nas fortes campanhas que criminalizaram o uso da maconha nos anos 30 e porque não, relembrar que o maior grupo midiático de nosso país foi ferrenho apoiador do golpe político-militar que implantou anos sangrentos em nosso país durante vinte anos e tendo este mesmo grupo admitido o “erro” recentemente em editorial[6], e usamos estes exemplos para restar demonstrado como a história vem se repetindo nos dias atuais.
Desde junho do ano passado temos visto grande vulto de ativismo político se insurgindo contra os escândalos de corrupção e descaso dos governantes, ativismo este que havia sido visto pela última vez em 1.992 por ocasião do Fora Collor[7], este sim com ampla simpatia da grande mídia e então sem criminalização de movimentos sociais. Desta vez, porém, em uma sociedade muito mais globalizada do que em 1992, os movimentos iniciados em junho de 2013 tomaram proporções muito maiores que em 1992. Se antes as convocações vinham boca a boca, agora elas vêm via internet, redes sociais, celulares, aplicativos de mensagem instantânea, etc. As pautas defendiam desde melhoria em saúde, transporte, educação e até protestos contra os poderes criminalizantes da mídia. Eis que então surgiram jovens de roupas negras, máscaras negras em seus rostos, os Black Blocs. Black Bloc é o nome que se dá a uma tática de protesto, com bases ideológicas na filosofia anarquista cujo objetivo é contestar as práticas que eles entendem como errôneas dadas pelo poder constituído[8], e aí que surge nossa problemática. Como sempre o mecanismo de resposta do Estado contra quem se insurge contra ele é a resposta a base da violência o que não foi diferente com os manifestantes e black blocs (que também são manifestantes!) que responderam às agressões também com violência. Não estamos aqui para valorar se as atitudes praticadas por alguns membros é certa ou errada e sim para olhar para as manifestações sob um aspecto jurídico num todo, pois o tema reflete a uma infinitude de opiniões que não cabe nesta breve coluna enumerá-las. Aqui a reflexão se dá somente no âmbito legal.
Sendo assim, olhemos a questão pela legalidade. Diz a nossa constituição em seu art. 5º, inciso IV que é a livre a manifestação sendo vedado somente o anonimato. Será que quando o constituinte criou esta norma ele a criou pensando que se alguém colocasse um pano preto no rosto estaria no anonimato ? Sinceramente, pensamos que não. Porém a solução para tentar “acabar” com os blac blocks foi a criação de lei no estado do Rio de Janeiro onde passava a ser proibido manifestar-se usando qualquer tipo de máscara ou fantasia. Não à toa após a promulgação desta lei nossos capitães nascimento reteram até o Batman, não o do STF mas sim o Batman que se manifestava de maneira pacífica. Estamos com Nilo Batista que defende que as atitudes praticadas pelos manifestantes é o direito de resistência[9].
III – CONCLUSÃO
A mídia hoje irresponsavelmente pauta suas matérias criminalizantes de acordo com os seus interesses, se hoje os manifestantes se manifestam contra ela, é mais fácil criminalizar do que conviver com alguém sempre lhe contestando. Pior ainda é quando surgem adeptos do discurso do ódio contra quem defende manifestantes, usuários de drogas, traficantes, ou seja, os que defendem quem o senso comum tem como inimigos, é só lembrarmos a máxima do senso comum: direitos humanos para humanos direitos. Isso tudo é reflexo de uma política populista midiática que a cada dia tenta criminalizar mais e mais o cotidiano causando um abismo ainda maior entre o direito penal e o direito processual penal com a nossa Constituição. Afinal, o veículo que condena o fato de um advogado defender quem quer que seja é rasgar a nossa carta magna e esquecer que o advogado é indispensável à administração da justiça, ou seja, sem o advogado não direito e não há justiça.
Para concluir, usando tanto o termo que ficou conhecido sob a égide do governo que tanto dizia lutar pelo social e pelo povo, mas que só vem corroborando com práticas fascistas perpetradas pelas polícias. Nunca antes se prendeu tanto na história de nosso país, nunca antes se desrespeitou tanto nossa Constituição, nunca antes se desrespeitou tanto nossas leis penais, nunca antes houve tantos heróis em nome da lei. Democracia é conviver com as diferenças e discordâncias, saber ouvir ou outro lado e tentar equalizar de melhor forma e não criminalizar quem pensa diferente. Pensar diferente não é delito, é democracia. Será mesmo que os inimigos são os manifestantes que protestam por um estado melhor, saúde melhor, educação melhor, transporte melhor ou os políticos que dia e noite desrespeitam a Constituição que eles juram obedecer no momento em que tomam posse de seus cargos eletivos?
Aos que se auto proclamam heróis ou defensores da moral e dos bons costumes, obrigado! Mas dispensamos vossas bondades, apenas respeitem a Constituição.
Thiago M. Minagé é Doutorando em Direito pela UNESA/RJ; Mestre em Direito Pela UNESA/RJ, Especialista em Penal e Processo Penal pela UGF/RJ, Professor da Pós Lato Sensu da UCAM/RJ, de Penal e Processo Penal da UNESA/RJ, Coordenador da Pós Graduação Lato Sensu em Penal e Processo Penal da UNESA/RJ e da graduação da UNESA/RJ unidade West Shopping; Professor visitante da EMERJ (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), Membro da AIDP – Associação Internacional de Direito Penal e Autor da obra: Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição – publicado pela Lumen Juris. thiagominage@hotmail.com
 
Jefferson de Carvalho Gomes é Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós Graduado em Criminologia, Direito e Processo Penal pela UCAM, membro do IBCCRIM.
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