domingo, 14 de setembro de 2014

A luta das mulheres, o Direito e a Justiça do Trabalho

arquivo geledes

A luta das mulheres, o Direito e a Justiça do Trabalho  

Magda Barros Biavaschi - Brasil Debate

O Direito do Trabalho surgiu para ajudar a corrigir as profundas desigualdades acirradas pelo modo de produção capitalista, que até hoje atingem mais as mulheres, especialmente negras. No programa de Marina, é clara a proposta de redução do papel da Justiça do Trabalho, retirando-a dos conflitos coletivos e reduzindo-a a mero árbitro 

Quando o apito Da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você… (Noel Rosa, Três Apitos, 1932).

Os versos que Noel escrevera à namorada Fina registram um tempo em que as mulheres brasileiras, par i passu ao processo de industrialização e de sistematização das normas sociais de proteção aos trabalhadores da indústria e do comércio, começavam a ser reconhecidas como sujeito de direitos trabalhistas.

Operárias que ao som do apito das fábricas de tecidos dirigiam-se ao trabalho “livre”, subordinado e remunerado. Mulheres que em 1932 conquistaram o direito ao voto, à limitação da jornada, à obtenção da carteira de trabalho, podendo buscar perante as Juntas de Conciliação e Julgamento a reparação de direitos lesados sem a outorga do marido, exigência, aliás, expressa no Código Civil de 1916.

Isso em uma sociedade em luta para superar suas heranças escravocratas, patriarcais e monocultoras para afirmar-se como Nação moderna.

Mas se em meio a esse processo o Brasil foi o 4º país do hemisfério ocidental em que as mulheres conquistaram o direito de votar, muitas foram as fogueiras anteriores em que arderam como “bruxas” ao clamarem por direitos iguais.

O movimento se espraiou pelo mundo. Rendeu frutos. No Brasil de hoje, apesar de a discriminação não ter sido superada e de as mulheres, em especial as negras, continuarem a ocupar os postos de trabalho mais precários e com menores salários, as transformações são reais.

Os índices do mercado de trabalho e de desigualdade apresentam sensíveis melhoras. Por outro lado, temos uma mulher na Presidência da República e, no curso do atual processo eleitoral, outra desponta com destaque nas pesquisas, Marina Silva.

E é sobre o programa dessa candidata que focarei alguns aspectos relacionados ao Direito e à Justiça do Trabalho.

Justiça que, instituída pela Constituição Federal de 1934, regulamentada em 1939, instalada em 1941 e integrada ao Poder Judiciário em 1946, nasceu com a incumbência, no âmbito individual e coletivo, de dizer e tornar efetivo um direito novo que se constituía: o Direito do Trabalho que, compreendendo as profundas desigualdades acirradas pelo novo modo de produção capitalista, buscava compensá-las, fundamentando-se no princípio da proteção.

E é para que os eleitores do século 21 que desfrutam dessa proteção tenham claro o que está escrito no programa da candidata que abordo algumas de suas propostas. Aliás, localizadas no campo ultraliberal do pensamento e conectadas com a “prometida” autonomia do Banco Central. Autonomia essa fundamentada em teorias que levaram a finança global ao colapso, como abordou recentemente Luiz Gonzaga Belluzzo.

No eixo 06, página 240 em diante é clara a proposta de redução do papel da Justiça do Trabalho, retirando-a dos conflitos coletivos e reduzindo-a a mero árbitro. Par i passu, edulcorada por retórica sedutora, vê-se a promessa de que o Estado dotará as representações sindicais de condições suficientes para que a negociação coletiva seja a fonte dos direitos visando à “segurança jurídica e aos investimentos.”

Seguem transcrições do programa e alguns comentários. Os grifos são nossos:

1. Insiste na instalação de um FÓRUM NACIONAL TRIPARTITE para redesenhar as relações de trabalho, com ênfase na negociação coletiva e com críticas ao “modelo corporativo” de Getúlio, reproduzindo antiga catilinária;

2. Na página 240, diz que a reforma sindical não se pode limitar a introduzir a “livre negociação” afirmando: …parece inadequada a reforma trabalhista que vise só à desregulamentação pura e simples do mercado de trabalho sem estabelecer condições para que a negociação coletiva, entendida agora como fonte de normas e condições de trabalho seja maior. Ou seja, admite a desregulamentação, a qual, no entanto, enfatiza que não pode ser pura e simples, mas acompanhada de outros elementos que a seguir enuncia;

3. A seguir afirma: O que precisamos é construir, por meio do diálogo tripartite, as condições para que o marco do direito do trabalho traga mais segurança jurídica para as partes. Ou seja, nega o caráter de disputa entre classes, ínsito à relação capital e trabalho, apostando no encontro das vontades “livres” e “iguais”, em espaço tripartite, para definir as normas trabalhistas, ao gosto de um receituário que mostrou seus efeitos deletérios no final do século 19 e início do 20 e que, aos ventos neoliberais, culminou na crise de 2008;

4. Mais adiante: O novo modelo diminuiria o papel do Estado na solução dos conflitos trabalhistas coletivos e a Justiça do Trabalho se limitaria à nova função de arbitragem pública. Por outro lado, ao Estado caberia dotar as representações de trabalhadores, inclusive judiciais, para a plena efetividade de seus direitos. Embora não creiamos que a reforma resultaria num modelo ideal, não é demasiado concluir que nosso Direito do Trabalho daria passo importante para democratizar as relações de trabalho e dar maior efetividade aos direitos trabalhistas e à segurança jurídica, indispensável aos investimentos. Portanto, atribui às organizações sindicais a incumbência de dar plena efetividade aos direitos. A Justiça do Trabalho, assim, teria seu papel reduzindo para que a “segurança jurídica”, “indispensável aos investimentos”, se concretize. Já vimos isso, não?

5. Já a terceirização irrestrita, como fomento à “produtividade” e à “eficiência”, está nas páginas 75 e seguintes. Como salientou o Maximiliano Garcez em Programa de Marina Silva defende grave ataque aos trabalhadores: Terceirização precarizante ampla e irrestrita, essa proposta apresenta potencial altamente destrutivo da representação sindical, discrimina, reduz salários, amplia os acidentes e desrespeita direitos conquistados, com impacto negativo na economia, na Previdência e no FGTS;

6. Nesse cenário, a autonomia do Banco Central é pressuposto.

O que está em questão é o redesenho da Justiça do Trabalho e das normas de proteção social conquistadas a ferro e fogo neste país de mil e tantas misérias.

Ao acenar às representações sindicais condições para que a negociação coletiva produza as normas que regerão as relações de trabalho, atribuindo-lhes o papel de dar-lhes efetividade, reintroduz a vencida proposta do “negociado sobre o legislado”, encaminhada ao Parlamento no período FHC e arquivada pelo Presidente Lula em 2003.

É isso que a sociedade brasileira deseja? Lembra-se, invocando novamente Belluzzo, que o direito que nasce das relações mercantis não reconhece nenhum outro fundamento, nenhuma legitimidade, senão a igualdade entre os produtores de mercadorias.


.Magda Barros Biavaschi
Desembargadora aposentada do TRT4, doutora e pós-doutora em Economia Aplicada, IE-Unicamp/SP, pesquisadora do CESIT/IE/Unicamp, professora colaboradora/Pós-graduação do IE e IFCH/Unicamp
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